#Kony2012: Os problemas de Uganda são outros

Com retratos simplistas e paternalistas sobre problemas africanos, vídeo conquistou milhares na internet

Tradução: Carolina Pezzoni

“Kony 2012”, um vídeo criado pela organização Invisible Children, tomou conta da internet. Em pouco mais de uma semana, o vídeo (aqui com legendas em português) foi assistido mais de 100 milhões de vezes. O filme de 30 minutos procura “tornar famoso” o senhor da guerra ugandês Joseph Kony, a fim de pressionar os Estados Unidos e outros governantes globais para aumentar seu empenho e trazê-lo à justiça.

Kony, líder do grupo rebelde Exército de Resistência do Senhor (LRA, na sigla em inglês), tem violentado e assassinado, e mais notoriamente, sequestrado crianças para se tornarem soldados ou escravos sexuais por quase 30 anos. Mostrando aos espectadores que “nada é mais poderoso do que uma ideia cuja hora chegou”, o vídeo procura tornar Kony um “nome familiar” e garantir que ele seja capturado antes do fim de 2012. Filmagens que mostram as atrocidades do LRA são habilmente contrastadas com o co-fundador do Invisible Children, Jason Russell, contando ao seu filho sobre Kony, assim como imagens da atuação de jovens ativistas com uma canção inspiradora ao fundo.

Mesmo que tenha se popularizado, entretanto, o vídeo foi imediatamente criticado como simplista, manipulador e enganoso. Se você assistiu “Kony 2012” e saiu pensando que uma medida realmente deveria ser tomada para ajudar Uganda, você não está sozinho. Embora houvesse um retrato muito claro de Kony como um vilão, e de como apoiar o Invisible Children, assinando uma moção de apelo, comprando um “kit de ação” Stop Kony, e se inscrevendo para dar ainda mais dinheiro para a ONG, o filme mencionou, muito brevemente, que Kony está fora de Uganda desde 2006, e muitos defensores perderam a mensagem. Um dia após o lançamento do filme – com a ajuda de declarações favoráveis de celebridades como Lady Gaga – o Twitter foi assolado por ávidos defensores dispostos a ir para Uganda e eliminar Kony.

Na verdade, a LRA começou no fim dos anos 1980, como uma resistência armada ao governo do líder de Uganda, Yoweri Museveni – um sulista –, que depôs o governo liderado pelo norte. No início dos anos 2000, entretanto, a LRA se converteu de um verdadeiro grupo rebelde com uma agenda política em uma banda de assassinos saqueadores – sequestrando e matando membros do seu próprio grupo étnico – o Acholi – por quem diziam estar lutando contra o governo.

Em 2006, após negociações fracassadas de paz, o LRA foi expulsa com sucesso de Uganda pelo exército, o UPDF, e desde então tem transitado, em número bastante reduzido, pelo leste da República Democrática do Congo, República Centro Africana e sul do Sudão. Continua a ferir civis nessas áreas, mas em números muito menores do que na guerra de Uganda. Desde 2006, a UPDF tem perseguido a LRA nesses outros países com o apoio dos Estados Unidos, mas embora tenha chegado perto não capturou ou matou Kony ou outros comandantes. Em outubro de 2011, o presidente Obama enviou 100 conselheiros militares para ajudar a UPDF com a perseguição, mas até agora não teve resultados.

Além de conjecturar sobre onde a LRA se encontra hoje, “Kony 2012” afirma que, sem pressão da opinião pública, os conselheiros americanos poderiam retirar-se, razão pela qual a ação dos espectadores é uma necessidade urgente. Esta alegação foi negada tanto pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, como pelo Comando Unificado das Forças Armadas para África, que disse não haver prazo para a missão.

Quem se importa com detalhes tão pequenos? O “Kony 2012” não é um filme inspirador para levar as pessoas a pensarem sobre uma parte do mundo que não recebe atenção suficiente? O Invisible Children não merece crédito por tentar pôr fim às aterrorizantes atividades de um homem terrível?

Muitos ugandeses não acham que a Invisible Children merece crédito simplesmente por ter boas intenções. Uma tentativa de exibição do filme na quarta-feira no norte da Uganda teve de ser interrompida diante de uma população enfurecida com o apelo do filme para “tornar Kony famoso” e o longo tempo em tela dedicado a Russell, o fundador americano do Invisible Children.

Como observa o respeitado jornalista ugandês Angelo Izama, “além de apresentar um erro geográfico, o vídeo desvia a atenção sobre problemas presentes onde o conflito perdurou por 22 anos”. O norte da Uganda teve uma tremenda recuperação durante esses 6 anos de paz, mas ainda é uma das regiões mais pobres no país, e está enfrentando atualmente uma misteriosa enfermidade chamada “nodding disease”, que atualmente afeta mais de 3 mil crianças.

Além disso, o governo de Uganda, ainda sob Museveni em seu 26º ano no poder, está contaminado pela corrupção e os serviços de segurança cometem abusos regulares dos direitos humanos. Existe uma preocupação de que dar mais apoio militar à UPDF terá o efeito de ampliar a capacidade de Museveni de usar o exército para permanecer no poder. Além disso, Museveni sempre procurou se lançar como aliado do Ocidente na “Guerra ao Terror” – Uganda é uma das principais fontes das forças de paz na Somália – dando-lhe recursos e isolamento das críticas sobre o seu próprio governo.

Além de encobrir seus problemas mais urgentes – mais pessoas morrem de doenças evitáveis a cada ano do que jamais foram mortas pela LRA – ugandeses se preocupam que toda a publicidade negativa por um problema que não existe mais prejudique a sua imagem. Uganda foi eleita o destino turístico número um para 2012 pelo guia de viagens Lonely Planet, e os agentes de viagem em Uganda já estão registrando cancelamentos atribuídos ao “Kony 2012”.

Preocupações sobre a forma como o filme conta a sua história não se limita a ugandeses. Conforme explica o renomado pesquisador da África, Alex De Waal, ele tem “uma série de preocupações sobre o impacto de retratos simplistas e paternalistas sobre problemas africanos, nos quais africanos são tratados como crianças à espera de americanos e europeus para salvá-los”. O vídeo mostra pouco sobre os esforços liderados por ugandeses para combater o LRA e reconstruir o norte após a sua saída.

Ainda assim, não é tarde demais para usar a maciça popularidade de “Kony 2012” para o bem. Enquanto há milhões que nunca vão fazer mais do que clicar o “gostei” no Facebook em qualquer evento, alguns dos milhares que estão doando para a Invisible Children ou procurando outras formas de se envolver estarão mais informados do que estava antes do lançamento de Kony 2012, mesmo sobre as coisas que o vídeo falha em deixar claras. Além disso, Invisible Children junto com outros grupos como o Enough Project e Resolve estão usando a proeminência do filme para pressionar políticos americanos para elevar o financiamento para itens providos pelos Estados Unidos, como centros de reabilitação para ex-crianças-soldado.

De volta à Uganda, enquanto permanece a insatisfação com a narrativa do filme, há total apoio para ampliar esforços para capturar ou matar Kony – contanto que não seja às custas do progresso de Uganda em reconstruir as antigas zonas de guerra no norte e que não mascarem seus outros desafios.

“[Kony] é hoje o mais perigoso rebelde do mundo”, disse nesta semana o político Norbert Mao, do norte de Uganda. “Estou feliz que esse filme tenha sido divulgado para nós não cairmos novamente em um estado de complacência”.

 

Fonte: Opera Mundi

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