Por: Ana Luíza Pinheiro Flauzina, Advogada, mestranda em Direito e ativista do EnegreSer/UnB
Foto: Alexandre Alves/Divulgação
As pressões do Movimento Negro associadas a uma legislação internacional que, dentre outras, assinala a necessidade de se promoverem políticas públicas visando a garantia do pluralismo cultural, constituíram o pano de fundo que possibilitou a promulgação da Lei 10.693/03. Como parte de uma ruptura com o modelo educacional que apaga da história a contribuição decisiva da população negra na construção desse país e nega aos alunos e alunas o acesso a um estoque cultural de todo um contingente humano, a referida lei, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/96) estabelece que o Artº 26A – Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
Após a regulamentação da Lei 10.639/03 pela Resolução n. 01, de 17 de junho de 2004, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação passa, então, a incorporar essa demanda histórica do Movimento Negro brasileiro. Entretanto, passados mais de dois anos, percebemos que tudo tende a virar perfumaria. Até o presente momento, o que temos é mais um enunciado simbólico que não se reveste em atividades efetivas para a implementação da lei na maior parte dos estabelecimentos de ensino.
Mas o que fazer diante de tal inércia das instâncias públicas e também da esfera privada na adoção do que já fora garantido por lei? Como viabilizar a efetivação dessa política? Um dos caminhos possíveis e que já começa a ser trilhado é o que lança mão de prerrogativas jurídicas.
Já contamos com algumas experiências em curso no que tange ao trato com o Judiciário sobre questões relacionadas à educação e população negra, em especial na discussão das políticas de ação afirmativa. Como investida mais recente, vale a pena citar a ação movida por entidades do Movimento Negro contra a USP(Universidade de São Paulo) e a FUVEST (Fundação Universitária para o Vestibular), visando a adoção de cotas para negros, indígenas e os egressos das escolas públicas, a fim de democratizar o acesso a uma das universidades mais elitistas do país. O processo judicial de nº 053.04.032688-0, que tramita na 14ª Vara da Fazenda Pública e será julgado, em primeira instância, pela Juíza de Direito Drª Christine Santini, promete gerar muitos desdobramentos.
No que tange ao ensino médio e fundamental, também há que se abrir brechas nesse domínio. Em primeiro lugar, como contribuição para um embasamento de mérito para a materialização do que dispõe a lei 10.639/03, voltemos nossa atenção para um importante dispositivo internacional que construiu um entendimento ímpar da importância da preservação do patrimônio cultural e histórico. A Declaração Universal sobre Diversidade Cultural aprovada pela Unesco, em Paris, no ano de 2001 é um documento central para os segmentos populacionais que, em todo o mundo, foram historicamente mutilados quanto à estruturação de sua auto-imagem em seu passado e as alternativas de construção de um futuro que verdadeiramente os contemple.
De acordo com o que está expresso nessa importante declaração, os seres humanos não só têm o direito como a necessidade de um passado em termos coletivos. Dessa forma, os direitos culturais são considerados parte essencial dos direitos humanos e mais, a preservação da diversidade cultural é pressuposto indissociável do respeito à dignidade da pessoa humana.
A cultura deve ser, portanto, compreendida dentro de um ambiente que a tome como parte indispensável da vida, referente não só ao grupo populacional que a legitima, mas de toda a coletividade. Nessa esteira, a diversidade cultural aparece como aspecto positivo a ser preservado pelas ações sociais e estatais. Nos termos da Declaração: “Fonte de intercâmbio, inovação e criatividade, a diversidade cultural é necessária para a humanidade como a biodiversidade o é para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e afirmada em benefício das gerações presentes e futuras”.
Ainda mais importante é a resposta política que esse documento firma como adequada a esse quadro de diversidade: o pluralismo. Ou seja, há o entendimento de que, no marco de Estados Democráticos de Direito, um quadro de diversidade cultural tem de ser acompanhado por políticas públicas que garantam também o pluralismo cultural.
É nessa perspectiva que o documento elenca alguns direitos a serem observados como pressupostos fundamentais da construção de marcos efetivamente plurais. Destacamos uma importante passagem do documento. “… toda pessoa tem direito a uma educação de qualidade e uma formação que respeitem plenamente sua identidade cultural”.
Podemos constatar, dessa maneira, que a inércia frente à implementação da Lei 10.639/03 fere frontalmente o que assinala a referida Declaração, servindo como um subsídio importante para o embasamento das medidas legais cabíveis no caso presente.
No que tange aos procedimentos, atentando para o que determina o ordenamento jurídico pátrio, percebemos que a base de nossa intervenção legal encontra-se na Lei 7.347/85. Esse é o dispositivo que disciplina a Ação Civil Pública de responsabilidade por danos causados a bens e direitos de valor histórico, entre outros.Sinaliza ainda a referida legislação, em um de seus incisos, a prerrogativa de abarcar lesão a direitos difusos ou coletivos. É em sede de Ação Civil Pública, portanto, que postularemos nossa demanda.
Para tanto, como já fora sinalizado no último número do Ìrohìn, um conjunto de entidades do Movimento Negro, no Rio de Janeiro, encaminhou uma representação ao Ministério Público, para que este, como fiscal da lei, apure a ausência de implementação da referida lei. Como primeira medida, requer-se a instalação de um inquérito civil público para a apuração das irregularidades denunciadas.
A partir daí, pode ser firmado um Compromisso de Ajustamento de Conduta às exigências legais, que terá eficácia de título executivo extrajudicial. Ou seja, num primeiro momento, pode haver uma composição com os estabelecimentos de ensino para que eles cumpram a lei sem a necessidade da intervenção direta de uma sentença judicial.
Caso não haja composição ou venha a ocorrer o descumprimento do Ajustamento de Conduta, requer-se, desde já, o ajuizamento de uma Ação Civil Pública contra os estabelecimentos de ensino. O objeto dessa ação, ou seja, o que ela visa, é a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. Nesse caso específico, o que se requer é que sejam os estabelecimentos de ensino condenados a uma obrigação de fazer: cumprir a Lei 10.639/03.
Percebe-se, dessa forma, que a despeito da inércia política na efetivação da lei, há um flanco jurídico pelo qual podemos avançar. É importante, entretanto, desconstruir a imagem de que a judicialização de nossas demandas representa vitórias em si mesmas. Com o que fora descrito acima, percebemos que o desenrolar dos acontecimentos jurídicos têm uma cadência e uma lógica própria, que estão longe de atender nossas necessidades imediatas. O grande desafio é se apropriar do Judiciário e de sua capacidade de fazer valer suas determinações, sem endossar o discurso que entende que tudo se resolve nessa seara. Por ora, aguardemos o curso dessas ações, com todo o zelo e monitoramento que deve ser dispensado ao poder de que fomos nos socorrer : um Judiciário em crise de consciência, mas que ainda é, em última instância, um reduto do mesmo poder branco que se nega a dar qualquer passo consistente rumo a mudanças estruturais, que representem o reforço da identidade e da auto-estima do povo negro nesse país.
Fonte: www.acaoeducativa.org.br/observatorio