Lima Barreto, Hilton Cobra e as muitas vidas que vão além da morte

A matéria-prima da literatura, sem muita possibilidade de fuga, é a vida, seja a vivida diretamente por quem escreve, as que se dão a observar ou ainda as cabíveis na imaginação. Como, então, o registro das vivências com as quais um/a escritor/a trabalha literariamente pode ser prejudicial ao bom resultado de seus escritos? O problema estaria no que vem fraturado na origem ou no que é fraturado pelo contato, pela recepção? Em que termos e quando se estabelece o desencontro entre o/a autor/a, sua obra e o mundo no qual ambos buscaram e buscam existir?

Por Ana Flávia Do Conversa de Historiadoras

Afonso Henriques de Lima Barreto, nasceu negro, livre, filho de pais também negros e livres, no Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1881. Ao longo de quatro décadas, fez-se homem numa cidade que se expandia de modo intenso e desigual, e ousou acreditar que ele e o que tinha a dizer mereciam ser considerados. Ousadia não porque vivesse numa sociedade em que, de antemão, as pessoas não pudessem falar. A lei maior republicana defendia a valorização dos talentos e virtudes de seus cidadãos, tal como fizera a carta magna imperial… Brasileiro, não sendo mendigo, analfabeto, mulher ou militar de baixa patente (e olhe lá), qualquer indivíduo estaria apto a exercer até mesmo o direito ao voto.

 

Ironias à parte, a ousadia começava quando, no trato cotidiano, a conversa se fazia outra. O país de Lima Barreto fora fundado na escravidão de africanos e seus descendentes, onde as possibilidades de liberdade e cidadania para essas pessoas se construíram em paralelo a crenças e costumes que as reivindicavam como incompatíveis e faltas de habilidades à condição de sujeitos autônomos. Ser humano convicto, Lima fez-se, pois, um atrevido incorrigível, que insistia em se incomodar com o “sentimento geral da [sua] inferioridade [ser] decretada a priori (Recordações do Escrivão Isaías Caminha), com o fato de “a capacidade mental dos negros [ser] sempre discutida a priori e a dos brancos, a posteriori” (Diário Íntimo).

Morreu, em 1922, na véspera do dia de finados, deixando o legado de uma vida que resultou em romances, contos, crônicas e mais um tanto de papeis escritos com objetivos diversos, nos quais, de modo natural ou intencional, deu vazão ao que Lélia Gonzalez chamaria tempos depois de “pretuguês”, produto de vidas que promoveram a africanização do português falado no Brasil. A despeito de interdições constantes, que atingiram até mesmo seu direito de andar nas ruas de sua cidade, interagiu com o mundo e criou personagens, diálogos, cenas que pareceram cruas e indigestas demais ao paladar dos adversários/críticos autorizados a dar a medida da sua obra e da sua própria pessoa. É que sua literatura força a presença de homens e mulheres negras e outros indesejados no primeiro plano, num momento de esforço concentrado para entendê-los como parte de um passado em vias de esquecimento e desaparição.

Não por acaso, ao longo de décadas, palavras como ressentimento, mágoa, isolamento, excentricidade, inadequação, estranheza, recalque e impotência se tornaram recorrentes nas mais diversas oportunidades para se falar a seu respeito e de tudo a ele relacionado. Difícil não construir a partir daí a imagem do fracasso ou quando muito de um sucesso trágico, com o qual não cabe estabelecer identificação positiva. Apresentado como sujeito desconectado do que seria a postura pressuposta e regular a outros “homens de cor” mais velhos e da sua geração, a Lima Barreto caberia o lugar de pária, exemplo incomum e inadequado de alguém que teria forçado a barra para falar de um racismo entranhado no paraíso da mestiçagem. Eis as linhas gerais de como se promover a fratura de uma pessoa, de um escritor e de uma obra.

Traga-me a cabeça de Lima Barreto, monólogo interpretado por Hilton Cobra, chega aos palcos, neste conturbado 2017, como um exercício de cura compartilhada com o público, no qual somos convidadas/os a ver o escritor negro como protagonista de um acerto de contas com o passado que cria novas possibilidades de futuro. “E quantas mortes existam, muitas, nelas eu viverei. Pois se em vida me submeti às mais sórdidas humilhações, em morte não cederei” – diz o personagem Lima Barreto, antes do início do seu confronto com as sete teses fundamentais defendidas por um grupo de eugenistas que requerem a exumação de seu corpo, a fim de examinar o cérebro desse homem que deveria ser geneticamente incapaz de produzir intelectualmente bem, porque não representante de uma raça tida como superior.

Hilton Cobra, em Traga-me a cabeça de Lima Barreto, 2017. Foto: Valmyr Ferreira.

Ao longo de uma hora, temos assim o prazer de assistir à comissão formada por vivos e mortos da estirpe de Renato Kehl, Nina Rodrigues, Afrânio Peixoto, Fernando Azevedo, Gobineau e Monteiro Lobato ser contestada por um Lima Barreto que, a despeito de carregar suas dores, não se constrange ou se intimida mesmo diante de recorrentes tentativas de uso da autoridade dos renomados homens de ciência para controlá-lo e silenciá-lo. Em vez disso, é seu desejo de falar que orienta o tempo, o que é aproveitado para que possa até mesmo dialogar consigo mesmo, com sua ancestralidade, seus fantasmas, afetos e desafetos íntimos.

Sob a direção de Fernanda Júlia, diretora do Nata − Núcleo Afro-Brasileiro de Teatro de Alagoinhas e com texto assinado pelo experiente dramaturgo Luiz Marfuz, o espetáculo marca os 40 anos de vida artística e profissional de Cobra e é dedicado à “bem lembrada” Luiza Bairros, mulher que o “fez negro e a partir daí participou de forma decisiva de todas as etapas da [sua] vida”. Ele que é o fundador da Cia dos Comuns (2001); criador do Fórum de Performance Negra (2005) e do Festival Olonadé – A Cena Negra Brasileira (2010); e articulador do movimento Akoben – Por uma política cultural honesta (2012), ações catalizadoras do teatro negro nas últimas décadas.

Tal como a literatura de Lima, o teatro de Hilton Cobra é militante. Negrator, este. Negritor, aquele. Juntos, tornam-se uma presença arrebatadora! Ao se encontrarem no palco, celebram as vidas, as muitas, insistentes e desabusadas vidas negras, tal como debocha Lima em Cobra: “Em 1923, um político brasileiro, cujo nome não convém lembrar, afirmou que, na fusão de duas raças, venceria sempre a superior. E que, por isso, no Brasil, o negro desapareceria dentro de setenta anos. Bem, já lá se vão quase cem. E nós continuamos aqui. De plantão. Calados ou indignados, ressentidos ou revoltados, derrotados ou bem-sucedidos e, mais do que bem-nascidos, seremos sempre muito bem-lembrados”.

A primeira temporada da peça esteve em cartaz até hoje, dia 7 de maio, no Teatro Sesc Copacabana, no Rio Janeiro. Eu, que vi as duas últimas apresentações, saí com a sensação de que muito mais gente teria e merecia dizer sobre sua interação com o espetáculo, que não termina quando as luzes se apagam. Há rumores de que logo, logo estará de volta e que, se fizermos a nossa parte como público, a fúria transformadora do “pretiço barreto escritor” pode ir muito além da capital carioca.

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