Na histórica condenação dos oito militares do Exército Brasileiro que assassinaram o músico Evaldo Rosa e o catador de latinhas Luciano Macedo, em ação indevida e desproporcional numa via pública em Guadalupe, subúrbio carioca, lanço o olhar à enfermeira Luciana dos Santos Nogueira. Num domingo banal, 7 de abril de 2019, ela estava a caminho de um chá de bebê, quando o carro em que estava com familiares foi alvejado por 82 tiros. Testemunhou a morte do companheiro, viu o filho Davi tornar-se órfão de pai pelas mãos do Estado, em que costumava confiar. Em depoimento, contou que, em meio à brutalidade, acalmou o marido: “Calma, amor, é o quartel”. Tornada viúva, empenhou-se na luta contra a impunidade que grassa no país, em particular nos casos de mortes decorrentes de intervenção das forças de segurança e defesa.
Luciana honrou uma triste tradição que alcança mulheres negras vítimas da violência homicida que ceifa a vida de filhos, maridos, irmãos. Repetiu a história de Marli Pereira Soares, empregada doméstica que testemunhou o assassinato do irmão, Paulo, aos 18 anos, com 12 tiros por policiais militares, em outubro de 1979. Ela foi com o pai à delegacia em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, denunciar o crime. No local, reconheceu um dos assassinos. Marli voltou mais de 30 vezes ao local para fazer reconhecimentos. Ganhou da imprensa o apelido Marli Coragem. Em 1980, em plena ditadura, passou em revista a tropa do 20º BPM para identificar os criminosos. A cena foi eternizada em fotografia de Alberto Jacob, do GLOBO. Quem lembra é Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional:
— Luciana segue um padrão comum no Brasil e na América Latina. As mulheres não são as principais vítimas diretas dos homicídios, mas são quem se coloca na linha de frente por justiça e reparação contra tudo e todos. Marli tinha 20 e poucos anos e foi atrás de justiça pelo irmão assassinado.
A casa de Marli foi saqueada e incendiada, e ela passou tempos escondida para fugir de ameaças. Cinco acusados foram a julgamento: um foi absolvido, quatro condenados. Em 1993, perdeu o filho Sandro, de 15 anos, também morto por policiais. De Marli a Luciana, são inúmeras histórias de mulheres brasileiras reivindicando justiça por seus mortos.
As Mães de Acari morreram sem encontrar os corpos nem ver punidos os culpados pelo desaparecimento de 11 jovens, sete deles menores de idade, sequestrados de um sítio em Magé, em 1990. Por falta de provas, o inquérito foi arquivado em 2010 sem sequer indiciar algum suspeito. Edméia da Silva Euzébio, mãe de Luiz Henrique (16 anos), uma das líderes do grupo, foi assassinada em 1993; os acusados seguem impunes.
As Mães de Manguinhos são outro grupo de enlutadas lutadoras contra a impunidade dos que vitimaram seus filhos. Ana Paula Oliveira espera há cinco anos o julgamento do PM acusado de matar com um tiro nas costas Johnatha de Oliveira Lima, aos 19 anos. Além de perder o filho, ela precisou lutar também contra a difamação do jovem, acusado de tráfico de drogas por policiais da UPP da comunidade.
Mãe de Marcos Vinícius, morto aos 14 anos durante operação na Maré em 2018, Bruna da Silva disse no Supremo Tribunal Federal que policiais impediram a entrada de uma ambulância que socorreria seu filho. Ela participou de audiência pública convocada pelo ministro Edson Fachin sobre a ADPF 635, que proibiu operações em favelas do Rio durante a pandemia e determinou a elaboração pelo governo de um plano de redução da letalidade policial. O julgamento foi suspenso em maio, por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.
— Mulheres e mães de vítimas de violência policial e militar são a principal voz na nossa sociedade. A atitude de Luciana, viúva de Evaldo, é uma lição para o Rio de Janeiro — disse a cientista social Silvia Ramos, coordenadora do CESeC e idealizadora do observatório que acompanhou a intervenção federal na segurança pública do estado, em 2018.
O fuzilamento de Evaldo, em abril de 2019, foi, para Silvia, consequência da intervenção, que estimulou soldados a fazer patrulhamento em bairros próximos a unidades militares:
— As mortes foram chocantes e um aviso sobre os resultados de entregar a segurança pública para as Forças Armadas. A condenação dos militares tem imensa importância simbólica, não só por fazer justiça às famílias, mas por mostrar a anomalia de usar soldados nas ruas da cidade para prevenir a criminalidade.
Carolina Ricardo, do Instituto Sou da Paz, considerou histórico o julgamento, por chamar atenção para o desvio de função e para a banalização do emprego das Forças Armadas na segurança:
— Não tínhamos visto um julgamento como esse. Não é possível disparar 80 tiros num carro sem responsabilização. Por isso é importante.
O instituto divulgou nesta semana a quarta edição da pesquisa Onde Mora a Impunidade, sobre esclarecimento de crimes de homicídio. O índice nacional, com base em informações disponíveis de 17 estados, é de 44%. No Rio, a proporção de resolução é de 14%, à frente apenas do Paraná (12%). A conta não considera mortes cometidas por agentes do Estado. Mas dá a medida do tamanho da impunidade a combater — por todo lado.