A luta antirracista não é uma guerra de negros contra brancos

Como não reproduzir o racismo numa sociedade estruturalmente racista? De que forma brancos podem se engajar na luta antirracista?

Por Pai Rodney , da Carta Capital 

Mesmo no candomblé este não é um debate fácil (Foto: José Cruz/Agência Brasil)

As discussões sobre o racismo e os lugares sociais de brancos e negros em nosso País não podem avançar sem conhecimento de causa.

Percebo que gente que respeito e pelas quais tenho um profundo afeto, principalmente por suas contribuições para a preservação de nossas tradições, não compreendem o movimento de negros e negras do candomblé (sobretudo os militantes e engajados na luta antirracista, entre os quais me incluo) contra uma afirmação de valores da branquitude nos terreiros.

A questão é grave e complexa. É preciso abrir o debate e falar a respeito, apesar de todo e qualquer incômodo. Como a luta é de todos, não podemos perder nossos pares por falta de informação e diálogo. Entretanto, alguns conceitos devem ser disseminados para essa discussão prosseguir.

É preciso perceber como o racismo opera e que essas controvérsias que nos distanciam são parte de sua eficiente estratégia. Esse debate é necessário, mas é extremamente difícil e requer habilidade.

Não sei se a tenho, mas quero contribuir com alguma informação que nos ajude a transpor este momento de polarização que tem influenciado as relações entre negros e brancos, inclusive no candomblé.

O racismo no Brasil é estrutural exatamente por atravessar todas as instituições sociais, influenciando de forma decisiva os comportamentos, inclusive os mais subjetivos. Por essa razão, não possibilita um engajamento nem oferece instrumentos que permitam um debate para alterar uma situação que sempre coloca os negros nos lugares onde ninguém quer estar.

Assim como um negro é aquilo que ninguém deseja ser, o branco é a representação de um poder que produz efeitos significativos na construção de uma sociedade como a nossa, na qual os quase quatro séculos de escravidão, justificada pelo mais violento racismo, deixaram marcas profundas na estrutura que determina papéis e lugares sociais.

Na verdade, restou ao negro aquilo que Marc Augé chamou de não lugar, que além de não reconhecido socialmente, não permite a elaboração de identidades, ou seja, não fornece referências em torno das quais alguém possa se constituir enquanto indivíduo.

É o espaço da marginalidade: as ruas e marquises que viram moradia, as estações rodoviárias ou metrôs, onde mãos negras fazem o trabalho duro da limpeza ou da construção. Lugares e tarefas em que a presença negra não causa estranheza. Ao contrário, é geralmente invisível.

Talvez lhes ocorra uma pergunta: “O que os brancos têm a ver com isso?”

Sabemos bem o que significa ser negro no Brasil. Sabemos também que muitos dos nossos amigos brancos não aguentam mais nos ouvir falar de racismo, que muitas vezes se sentem incomodados, que outras vezes acham que exageramos, que generalizamos, que somos chatos, que não temos outro assunto.

Se ouvir falar de racismo é difícil, imaginem o que é sentir na pele seus efeitos.

Mais do que necessário, o incômodo é inevitável. Agora, é importante que se diga que não é nada pessoal. E peço aos meus amigos brancos que não tomem isso como ironia. Peço mais: empatia e solidariedade. Se ainda assim for muito difícil se colocar no nosso lugar, peço que estejam atentos, que sejam bons leitores ou ouvintes.

Se você é racista, se já expressou de alguma forma seu ódio por negros, nada disso vai lhe servir. Estivéssemos num país sério, verdadeiramente comprometido com a desconstrução de estruturas sociais injustas, racistas seriam tratados com o rigor da lei, mas, como sabemos, não é o caso.

Talvez você tenha uma visão “americanizada” de como o racismo opera. O fato do racismo não ter sido institucionalizado oficialmente por aqui, com leis ou regimes de segregação, e a criação do mito da democracia racial geraram uma falácia que ainda perdura, a de que não existe racismo no Brasil.

Esse mito permeia nosso imaginário de forma tão eficiente que muitas vezes não somos capazes de definir situações de racismo de forma objetiva e os brancos brasileiros tem uma imensa dificuldade em admitir que são racistas, embora quase todos conheçam alguém racista.

Esse último dado demonstra que é sempre mais fácil perceber o racismo no outro do que assumir o próprio racismo. Entretanto, é uma verdade dura e incontestável que no Brasil todo branco é potencialmente racista.

Neste momento, peço aos meus amigos brancos que não interrompam a leitura. Não se trata de uma generalização, mas da simples constatação de que, inseridos numa dada estrutura, nossa tendência é reproduzir aquilo que essa estrutura suscita.

Portanto, num país estruturalmente racista, calcado numa expressão de poder fundamentalmente branca, brancos serão racistas. Mas não porque o querem, e sim porque são forjados, educados, instruídos dentro dessa estrutura que define os lugares sociais de superioridade para brancos e subalternidade para negros. Desconstruir essa estrutura é o compromisso da luta antirracista.

Como a sociedade brasileira se funda numa estrutura de poder escravagista, todo nosso processo de colonização sempre colocou pretos e pobres em lugares sociais rejeitados pelos brancos, isto é, pelos detentores de poder.

A principal função do racismo é negar ou mesmo destruir a humanidade do negro e sua maior arma sempre foi a morte, tanto real quanto simbólica.

Dizimar, segregar e negar acesso a espaços de ascensão e poder, condenar à invisibilidade, encarcerar, destituir de cultura e identidade. Qual branco brasileiro passa por isso? Aliás, ser branco no Brasil é ter, por exemplo, o privilégio de nunca ser acusado de racismo mesmo quando comete o crime descaradamente.

Basta um pedido de desculpas, uma avó ou um amigo negro e tudo fica por conta do mal-entendido. Mas um negro perdido no meio de uma manifestação com um vidro de desinfetante na mochila amarga anos e anos de cadeia.

Essas situações discriminatórias são a mais nítida expressão do racismo estrutural. Existe uma classificação que desqualifica e estigmatiza o negro, condenando a maioria de nossa população ao confinamento nas periferias e favelas, à margem de qualquer possibilidade de cidadania. Dessa forma, os lugares de poder e as estruturas sociais se mantêm inalterados.

Reconhecer que somos todos racistas, que fazemos parte de uma sociedade estruturalmente racista, é uma condição para a desconstrução dessa estrutura. Claro que há brancos que não são racistas, ou seja, que não expressam ódio nem têm atitudes discriminatórias em relação aos negros, portanto, não devem se sentir ofendidos com a constatação de que todo branco é potencialmente racista.

Se essa carapuça não te serve, ainda assim vista-a. Explico: ouvir o que negros e negras têm a dizer sobre o racismo vai te fornecer instrumentos para se tornar um antirracista. Exercite a escuta, seja solidário e respeite o lugar de fala daquele que sente uma dor que você nunca vai poder mensurar.

Dores não se comparam. No vasto universo das subjetividades, as dores são sempre diferentes e não há parâmetro para medi-las. Não temos nem como auferir o impacto do racismo em cada um, mas os que detêm os privilégios precisam aprender a ouvir nossas queixas e compreender nossos momentos de explosão e raiva diante de tudo aquilo que nos oprime.

Quero dizer aos meus amigos brancos que quando denuncio o racismo não estou a acusa-los. Na verdade, estou apontando problemas estruturais que dependem de todos nós para serem corrigidos.

Quando o candomblé se abriu para todos, sabia que negros e brancos teriam que resolver seus conflitos sociais para realizar de fato tudo aquilo que os orixás preconizavam.

Viver em harmonia, apesar das diferenças, é um desafio que os terreiros podem perfeitamente ensinar à sociedade mais complexa. Contudo, se não houver descolonização e se os valores da branquitude se impuserem, as religiões de matriz africana perdem completamente seu sentido original.

Como é estrutural, o racismo está na base da sociedade e penetra muitas vezes os terreiros de candomblé. É preciso diferenciar a reprodução estrutural das expressões de ódio, à qual qualquer um de nós está sujeito, e reconhecer que nosso País é racista, pois não há outra maneira de transformar nossas relações.

Não podemos naturalizar lugares sociais determinados pelo racismo. Acreditar que somos todos iguais e desconsiderar que mais de 90% dos jovens assassinados e encarcerados são negros é colaborar para a manutenção de uma estrutura racista, é ser racista.

O racismo está incrustado no inconsciente coletivo do povo brasileiro. Todas as marcas provocadas pelas vivências influenciam diretamente nos modos de ver, ser, pensar, sentir e perceber o mundo.

A questão racial é um dos vetores que se entrecruzam na produção desse inconsciente, no qual experiências pessoais não podem estar dissociadas de nenhuma instituição, muito menos da estrutura.

Por fim, quero recomendar a leitura da Coleção Feminismos Plurais, coordenada por Djamila Ribeiro, especialmente o livro “O que é racismo estrutural”, de Silvio Almeida, que certamente ajudará no entendimento da questão e evitará que novas celeumas venham a distanciar pessoas que caminham na mesma direção e que precisam somar esforços na luta contra todas as formas de discriminação.

 

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