Quando a separação parecia se tornar um fato mais ou menos irreversível entre nós, um dia, ao me ver um pouco abalada por sua frieza e a responsabilidade com a qual me deixava sozinha, impacientou-se: “Não fica com raiva, com mágoa de mim. Vai ser pior pra você. Supera. Depois fica aí triste, doente, com câncer, vai ser pior. Supera aí, vai.”
Por Camila Caringe, do HuffPost Brasil
A última frase foi o gatilho para um estado de ânimo ainda mais frágil. “Supera aí” era uma confirmação, mais uma entre tantas, entre anos, de que para ele tanto fazia, de que não havia senso de causa e consequência, responsabilidade, empatia. Aquele ser humano não era capaz de perceber os traumas que a violência física e psicológica deixam em alguém. Ele se sentia totalmente isento, desimplicado da situação em que havia colocado duas mulheres. E tinha razão: se eu não superasse, pior pra mim.
Mas o que significa superação? Como a gente sabe que finalmente venceu a dor, que o turning point chegou?
Na minha experiência, esse momento nunca chega. Não porque a superação não seja possível. Ela é. Mas é um trabalho interior contínuo (e não pontual), de postura, orientação e opções diárias que colocam você em relações sadias, de afetos descomplicados e ao mesmo tempo sofisticados no respeito e na linguagem, sobretudo em ocasião de conflito.
A superação é uma sábia decisão. Depois outra. Outra. Mais uma. A decisão de não permitir que alguém te trate daquela maneira. Superar não tem nada a ver com esquecer, perdoar não tem nada a ver com se colocar em contato novamente e sorrir. Superar é ser capaz de agradecer ao outro porque ele te ensinou a ser forte na marra. Por causa da dificuldade você é melhor dia após dia e, em vez de se perder no caminho, soube usar a dificuldade para aprender. Quando alguém errou com você e doeu, superar é lembrar do que aconteceu sem chorar, talvez até sentir um pouco de compaixão pelo ser transtornado que deixamos para trás. É ser capaz de dizer “não existe espaço na minha vida pra você, mas obrigada, porque foi você mesmo que me ajudou a ver isso”.
Algumas semanas atrás, uma moça nos procurou perguntando se a Lei Maria da Penha se aplicava no caso de o agressor ser o irmão. O texto incorporado à Constituição fala em “unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas”. A Lei, portanto, se aplica para seu irmão, pai, tio, namoradinho. Desde que a vítima seja mulher, o agressor pode ser qualquer um em convívio doméstico. Sua mãe, sua irmã, sua tia, inclusive. Se for uma pessoa fora desse círculo, discute-se a lesão corporal sem Lei Maria da Penha, que surge para tentar equilibrar as tantas desigualdades de gênero às quais mulheres já nascem submetidas.
Em dado momento da conversa, a moça pergunta: “é normal, após uma agressão, o agressor fingir que nada aconteceu, como se estivesse tudo bem?” Ô se é normal. Depois de vários episódios, quando a violência se consolida finalmente como um modo discursivo operante no cotidiano, ele vai falar o quê? “Desculpa, isso não vai mais acontecer” passa a não surtir nenhum efeito. Então ele não se dá mais o trabalho de remediar. “Ok, já me acalmei, passa o requeijão” é a atitude mais simples.E essa mudança súbita, a incoerência repetida é que vai fazendo com que a gente considere se a loucura não é, na verdade, nossa.
Por isso, o importante é compreender que com ou sem Lei Maria da Penha, com ou sem o acionamento da polícia, medida protetiva ou processo judicial, violência física, psicológica, chantagem, coação, trabalhos forçados, ofensas, xingamentos, tudo isso, além de ser crime, não é normal e é inadmissível.
Sobre isso meu agressor falava com alguma razoabilidade: quando a gente não sai dessa, não supera, pior pra gente. Mas tudo começa quando você percebe que está numa situação que é muito menos do que você merece e parte para empreender o caminho, normalmente longo, de libertação.