Na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, uma pesquisa mostra como a moda afro-brasileira vem ganhando espaço e se tornando cada vez mais um símbolo de resistência e de autoafirmação para a população negra contra o racismo e a discriminação. “A ‘mão negra’ está e sempre esteve presente na moda. Mas a história da moda brasileira é contada a partir do século 19, centralizada na Belle Époque, e com isso se serviu da cultura europeia”, conta a desenhista industrial Maria do Carmo Paulino dos Santos.
A pesquisa de mestrado Moda Afro-Brasileira, design de resistência: o vestir como ação política tem, entre outros objetivos, recontar essa história e mostrar o quanto “esse vestir é capaz de criar uma consciência que resulte em ações políticas”.
Segundo Maria do Carmo, a participação negra na moda brasileira já tem seus registros no século 17, quando mulheres negras produziam e comercializavam roupas de linho, joias e tecidos. “Eram conhecidas como ‘vendeiras’, que negociavam seus produtos nas fazendas como ambulantes, se deslocando, por exemplo, da Bahia a Minas Gerais. E elas já tinham seus olhares voltados para a moda”, destaca.
É o caso de Joana Machada da Silva, ou Dona Joana, uma mulher negra alforriada no ano de 1745. “No inventário dela estavam descritos bens como tecidos nobres de vários tipos com variedade de cores e matérias-primas, tecidos pesados e encorpados, bordados em ouro, renda em prata, roupas prontas, sapatos. Joana era uma das vendeiras que viajavam pelas fazendas vendendo seus produtos, chegando a se deslocar para fazer negócios de Recife a Minas Gerais, passando pelo Estado da Bahia”, conta.
Orgulho Crespo
A inspiração para Maria do Carmo em empreender sua pesquisa veio de suas observações quando acompanhou a Marcha do Orgulho Crespo, que acontece em São Paulo desde 2015, todo dia 26 de julho. Em duas edições da manifestação (2015 e 2017), a pesquisadora acompanhou de perto a marcha, que parte do centro da cidade, na Avenida Paulista. Graças a essa manifestação e devido ao reconhecimento afirmativo na luta contra o racismo e o preconceito étnico-racial, foi aprovada a Lei Estadual 16. 682/2018 que instituiu o Dia do Orgulho Crespo de São Paulo, que é celebrado anualmente todo dia 26 de julho. “Neste ano, devido à pandemia, certamente a manifestação não ocorrerá como nos moldes anteriores. Mas, certamente, haverá eventos virtuais em comemoração à data”, antecipa Maria do Carmo.
Naquele mesmo ano de 2015, em São Paulo, no dia 25 de julho, aconteceu o lançamento oficial da Marcha das Mulheres Negras, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Afro-Caribenha e Dia Nacional de Teresa de Benguela. “Nesses dois eventos pude registrar como as vestimentas ganharam contornos de ação política. Ficou claro que a aquela juventude estava ávida para ter um protagonismo negro. Principalmente as mulheres. Enfim, o vestuário passou a potencializar questionamentos”, descreve a pesquisadora.
Maria do Carmo acredita que, com as manifestações e o protagonismo feminino e jovem, o movimento negro foi revigorado nos últimos anos. “E a moda, claro, vem cumprindo seu papel”, afirma. Segundo a pesquisadora, os discursos de jovens manifestantes nem sempre resultavam de um conhecimento do que é, de fato, o movimento negro. “Mas as vestimentas acabam levando a uma reflexão e à busca por informações a respeito da história de resistência do movimento negro no Brasil a partir da diáspora”, afirma Maria do Carmo.
Novo mercado
O vestir das roupas de origem africana, em geral, é mais volumoso e mistura tecidos planos estampados, como informa Maria do Carmo. “A própria indústria têxtil também começou a trabalhar mais essa mistura de cores e estampas, inclusive nas malhas”, observa. Além dos trajes e acessórios, as manifestações também abriram espaço aos empreendedores. Foi quando os “afro-empreendedores” passaram a ofertar produtos de beleza e cosméticos destinados a pessoas negras.
Como parte do estudo, a pesquisadora entrevistou e analisou o crescimento desse mercado nos últimos anos. Ela cita como exemplo Isaac Silva, jovem estilista e designer negro que é estabelecido em São Paulo. “Mesmo passando por uma faculdade de moda, a trajetória desse profissional não foi fácil. Ele teve muita dificuldade para se posicionar, devido à discriminação que sofreu. Por esse motivo ele decidiu empreender e constituir sua própria marca”, conta Maria do Carmo.
Outra situação analisada pela pesquisadora foi a Rede Kilofé de Economia de Negras e Negros do Ceará, que também participa com seus produtos durante as marchas do Orgulho Crespo e do Dia da Mulher Negra. “São eventos que, além de ser uma oportunidade para diversos empreendedores, são também conscientizadores. Após as caminhadas pelas ruas da cidade, há reuniões e rodas de conversas em que são debatidos temas relacionados ao racismo e à discriminação racial”, ressalta a pesquisadora.
Maria do Carmo não aponta na cidade de São Paulo um polo específico da moda afro-brasileira mas observa que, em muitas lojas, já há espaços para a venda desses trajes. “Mesmo que determinada loja ou boutique não tenha essa preocupação, ela acaba trabalhando com algum produto”, aponta. Segundo ela, um caminho para que a moda afro-brasileira ganhe mais espaço é seguir a diretriz recomendada por Isaac Silva, que é a de “desconstruir a ideia de que a moda afro é destinada somente para negros”. “Ele, em sua loja, inclusive, trabalha também com produtos convencionais”, lembra a pesquisadora.