Modelo fala sobre caso de racismo envolvendo cabeleireiro: “Senti muito medo”

Enviado por / FonteMarie Claire, por Laura Reif

Na última semana, um vídeo de uma cena de racismo em um salão de beleza viralizou. Nele, a modelo Mariana Vassequi, 25, tem os cabelos tocados pelo cabeleireiro Wilson Eliodorio enquanto ele faz, livremente, comentários sobre os fios da modelo, tais como:

“Esse cabelo ou essa pessoa é um filhote de patrão, porque o patrão comeu uma escrava e gerou isso aqui.”

“Esse cabelo é um cabelo que vem do morro, e agora essas mulheres tem dinheiro e agora elas querem ir em salão chique, por isso nós temos que saber mexer com elas.”

Entre outros.

Congelada com a cena, Mariana ficou estática enquanto tentava processar o que estava acontecendo durante o que deveria ser um trabalho para divulgar produtos de uma marca de cosméticos. Em entrevista exclusiva para a Marie Claire, ela conta que manteve a postura profissional e que demorou a acreditar no que estava passando, pela gravidade das falas de Wilson. “Senti medo, muito medo”, relata.

“Em um primeiro momento, pensei ‘será que estou mesmo ouvindo isso?’. Você está exercendo seu trabalho, não espera que vá ser agredida verbalmente dessa forma. Até porque veio de uma pessoa que eu não imaginava que falaria tal coisa. Depois, veio uma paralisação, de medo. Se essa pessoa se sente confortável em falar isso e ninguém está falando nada, então é porque está todo mundo bem confortável também”, conta.

Tudo o que aconteceu ali foi emblemático, os toques nos cabelos, os comentários falando sobre a escravização dos povos negros e até do abuso sexual das mulheres negras escravizadas. Tudo em forma de “piada”. A carga atingiu Mariana com tudo, que disse que está indo atrás dos seus direitos para tratar legalmente da situação. Não entrou em detalhes sobre o processo, mas garantiu que está em busca de justiça.

“O racismo não é um erro, é um crime. Gostaria que todas as pessoas que passaram por essa situação possam se conscientizar dos seus direitos. Muita luta e muita tristeza aconteceram para que o racismo fosse considerado um crime, para que as vítimas pudessem ser respaldadas, e a gente deve levar em consideração esse histórico”, diz.

A relação da mulher com os cabelos, especialmente da mulher negra, é um assunto delicado. Foram anos de opressão, procedimentos estéticos de alisamento e luta para aceitação dos cabelos naturais. Mariana descreve a relação com os cachos como a de conflito, entendimento, conscientização e aceitação. Ela cita o fato de que as modelos negras são fotografadas, na maior parte das vezes, com cabelos alisados ou carecas. Para Mariana, as falas do cabeleireiro não afetam somente a ela, que criou uma relação de amor com os cachos, mas todas as mulheres negras que receberam o vídeo – e que vivem na pele o preconceito, porém sem ter o respaldo da mídia e de personalidades famosas, como aconteceu com a modelo.

“A humilhação de uma cena horrível como essa é muito dolorosa. A gente tem que ver o custo das coisas. Uma modelo espera que um dia as pessoas reconheçam o trabalho dela pelo seu potencial, não por uma cena de humilhação. Contudo, os comentários de carinho me deram muita força. Não estou sozinha. Se naquele momento achei que estivesse em desvantagem, hoje me sinto em uma posição completamente diferente”, conta.

Ela diz que ficou muito feliz em ver atrizes como Taís Araújo se posicionando contra o ato de racismo, o que traz mais força à causa. “Existem mulheres de baixa renda, negras de baixa renda. Elas sentiram o que senti, elas também já aceitaram um trabalho que não gostavam pelo dinheiro. Me senti no dever de falar por essas mulheres, que representam a maior parte do Brasil”, explica.

Carreira

Mariana iniciou a carreira de modelo há apenas quatro anos, em 2016. Ela tinha como objetivo seguir carreira acadêmica e fez graduação em ciências sociais. “Inclusive, via a moda com olhos de futilidade, tinha muitas críticas contra a moda. Era muito abordada na rua por conta da minha altura, mas sempre negava. Até que, em um belo dia, disse sim. A partir dali, minha vida mudou. Descobri na moda uma forma de empoderamento. A fotografia tem essa coisa do registro”, conta.

Ela já desfilou em países como França, Espanha, Itália e, no Brasil, em locais como o Copacabana Palace e no Paço Imperial, no Rio de Janeiro. Mariana cita que foi ali que, em 13 de maio de 1888, após assinar a Lei Áurea, a princesa Isabel anunciou ao povo a abolição da escravatura.

Injúria racial x crime de racismo

Enquanto a injúria racial consiste em ofender a honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, o crime de racismo atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça. Ao contrário da injúria racial, o crime de racismo é inafiançável e imprescritível.

A injúria racial está prevista no artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal, que estabelece a pena de reclusão de um a três anos e multa, além da pena correspondente à violência, para quem cometê-la.

Em geral, o crime de injúria está associado ao uso de palavras depreciativas referentes à raça ou cor com a intenção de ofender a honra da vítima

Outro lado

Wilson Eliodorio é conhecido por ser cabeleireiro de famosas como Taís Araújo, Elza Soares, Iza, Cris Viana, Gaby Amarantos e Naruna Costa. O nome dele sempre circulou como especialista em cabelos crespos e cacheados.

Depois do ocorrido e da repercussão nas redes sociais, Wilson publicou um vídeo em seu Instagram e pediu desculpas a Mariana e Ruth Morgan, outra modelo que participou do evento. Após a postagem do vídeo, o cabeleireiro não concedeu mais entrevistas e informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que está em um momento profundo de reflexão. “Pra além das óbvias desculpas, meu compromisso de mudança de atitude e revisão de valores. O momento é de escuta e transformação”, escreveu na legenda do vídeo.

“Eu erro. E o fato de ser negro não me isenta do erro. Porque assim como você, eu nasci nesse país racista. Sim, sofreu preconceito, racismo, e não aprende, não aprendeu que não se repete isso com um irmão. Mesmo negro, bicha preta, repetiu todas as merdas que ouviu pela vida, que ouve todo dia, que a gente ouve pela vida afora, perpetuando essas piadas horrorosas que disseminam ódio, racismo, machismo, misoginia, preconceito.”

“Eu trabalho com o cacho, entendo o cacho, entendo o crespo, e sou muito orgulhoso de influenciar mulheres a assumir seu cabelo natural, crespo.”

“Tenho muita culpa, muita vergonha, de ter dito o que disse. Principalmente pela dor que causei. Mas repito, ser preto não me faz imune da construção racista desse país. Estou em reeducação. Assim como tantos de nós. Desculpa. Desculpa, Mari, desculpa Ruth.”

 

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para além das óbvias desculpas meu compromisso de mudança de atitude e revisão de valores. o momento é de escuta e transformação

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