No último dia 22 de fevereiro, a jornalista Amanda Audi recebeu com alívio a notícia que um juiz negou o seguimento de uma ação criminal que ela respondia há dois anos. Amanda foi processada porque decidiu expor a má condução de uma investigação policial de um caso de violência sexual, ocorrência que registrou em 2019. O boletim foi arquivado sem conclusões depois de um ano e, como desabafo, ela decidiu tornar público o caso em 2020.
“Já que nada deu certo, pensei em fazer minha tentativa de justiça. Estava com raiva e um sentimento enorme de injustiça”, diz, em conversa com Universa. No post em questão, a jornalista publicou uma foto do homem que denunciava, o que deu margem para abertura de uma série de processos. “A partir daí, começou uma ofensiva processual contra mim”, relata.
Três ações judiciais foram abertas, uma criminal, por calúnia, injúria e difamação, e duas cíveis, com pedido de indenização de R$ 150 mil. Além disso, ela recebeu notificações extrajudiciais para remoção de conteúdos das redes sociais sempre que mencionava o episódio.
“Isso me pegou porque ele falava sobre o caso livremente, chegou a publicar um artigo em jornal. E eu estava completamente calada”, diz a jornalista, que entrou com um recurso e, hoje, ambos não podem falar sobre o episódio de 2019.
Amanda conta que não se arrepende da publicação, mas diz que, se fosse hoje, talvez fizesse o “exposed” de forma diferente — principalmente porque, além dela, outras nove pessoas também foram processadas por manifestar solidariedade ao caso e republicar seu post. Destas, dois conhecidos da jornalista já foram condenados a pagar R$ 2,5 mil e R$ 10 mil ao homem que ela denunciou. “Me sinto culpada porque simplesmente queriam me ajudar.”
Em janeiro, um processo cível por danos morais por causa do tweet também foi arquivado. “É um assunto que eu gostaria muito de encerrar e passar adiante, mas não tem como. Infelizmente, tenho que ficar me lembrando toda hora disso por causa desses processos. Quando postei, pensei que poderia ter consequências, sim, mas decidi que valia a pena. Achava necessário, já que não teria jeito com a Justiça, eu fazer algo por mim. Mas eu não imaginava que rolaria esse assédio judicial.”
A advogada criminalista Maira Pinheiro, especialista em gênero e que cuida da defesa da jornalista, define o assédio jurídico como a estratégia de acessar o judiciário para aprofundar a prática da violência e intimidar mulheres que decidem denunciar agressões.
“Vemos muito o assédio jurídico nessas situações em que crimes são expostos. As mulheres são constrangidas a se calar sobre fatos que aconteceram com ela”, pontua.
Riscos de processo após um “exposed”
Para evitar esse tipo de retaliação jurídica, a principal orientação da advogada é narrar o fato sem incluir nomes ou informações que permitam a identificação do agressor.
“Com isso, fica difícil dizer que existe uma conduta deliberada de atentar contra a honra e a reputação desse homem. É compreensível que, em geral, a necessidade da mulher seja que a identidade do agressor seja divulgada para impedir que ele faça a mesma coisa com outras pessoas. Mas, a partir do momento que ela descreve o nome dele na sua própria rede social, se coloca em uma posição vulnerável para sofrer retaliação jurídica.”
Mesmo sem citar nomes, é preciso cuidado com indiretas nas redes sociais, que também podem acabar em processos. Foi o que aconteceu com a recepcionista Bianca*, 25. Em fevereiro deste ano, a jovem foi condenada a pagar R$ 10 mil a um DJ que, segundo seu relato, teria abusado sexualmente dela em uma festa m 2016.
“Tinha bebido muito e uma amiga viu ele em cima de mim, me beijando, enquanto eu estava desmaiada”, conta ela, que tinha 19 anos na época.
Revoltada com o que aconteceu, Bianca conta que fez diversas publicações sobre o episódio no Twitter, sem citar o nome do DJ. Ela também deixou comentários em publicações de casas noturnas que divulgavam a presença dele em seus eventos. “Quando aparecia no meu feed uma festa e via que ele tocaria, comentava no perfil da casa coisas como ‘vocês deveriam selecionar melhor os DJs’. Mas sempre sem falar o nome dele. Nunca expus diretamente o caso porque sabia que poderia dar processo.”
Em 2019, ele entrou na Justiça contra Bianca por difamação. “Sempre tentei tomar cuidado. Mesmo assim ele conseguiu usar prints contra mim. Quando fui notificada do processo, me senti louca, tive crises de ansiedade, não consegui participar do julgamento porque não queria vê-lo. Desde que saiu a sentença, também comecei a ficar fisicamente mal. É um processo complemente estressante”, conta a recepcionista.
A jovem diz que ficou surpresa com a decisão da Justiça porque, no mesmo ano, ele publicou um post em que dizia que ela teria inventado o abuso, com uma foto de Bianca. Ela conta que vai recorrer da decisão. “Levei uma testemunha que o juiz ignorou, ela nem é citada na sentença. Foi um processo bastante machista.”
Fui processada por expor um agressor. E agora?
Caso o agressor entre com uma ação contra a vítima, Maira Pinheiro afirma que é importante ter provas, principalmente que comprovem a ocorrência da violência. Testemunhas, prints da vítima falando sobre o acontecido, para mostrar que ela sempre descreveu os fatos da mesma maneira, ou documentação de atendimento psicológico ou psiquiátrico podem ser importantes nesta etapa.
“A gente sabe que violência contra a mulher, em regra, acontece na ausência de testemunhas. Se a vítima conversou com uma amiga na época dos fatos sobre o que tinha acontecido, esta amiga pode redigir uma declaração descrevendo como a mulher estava quando fez o relato. Ela pode apontar as circunstâncias dessa conversa, seu estado emocional e quais foram os elementos que motivaram ela, por exemplo, a não denunciar.”
Se agressor conseguir uma liminar que proíba a mulher de falar sobre o assunto ou que faça com que as publicações sejam excluídas, é melhor cumprir a decisão judicial. “A não ser que a vítima seja muito rica, sofrer as consequências de descumprir uma decisão judicial dessa natureza pode prejudicar demais a vida da pessoa”, diz Pinheiro.
Busque orientação
A advogada também recomenda buscar orientação jurídica, principalmente de profissionais que tenham compreensão sobre o significado da liberdade de expressão para as mulheres nestes casos.
“Ainda estamos avançando, enquanto sociedade, em compreender que, quando uma mulher fala sobre a violência que ela sofreu e narra um episódio que a traumatizou, ela está falando de si, e não da honra do cidadão que praticou essa violência. Ela está falando do que ela viveu e como isso afetou sua vida para incentivar outras mulheres a não ficarem em silêncio.”
“Tive amparo jurídico para publicar relato”, diz atriz que denunciou estupro
A orientação jurídica foi decisiva para que a atriz Julia Konrad decidisse revelar que sofreu estupro conjugal em um antigo relacionamento. Em junho de 2020, ela expôs o caso por meio de uma carta aberta. Antes da publicação, ela já havia sido alertada sobre os possíveis riscos, o que a deixou mais segura na hora de fazer a denúncia. “Quando publiquei meu relato, estava muito bem amparada juridicamente, acho que foi um grande acerto ter tido esse acompanhamento.”
A atriz recebeu a orientação de que não poderia dar nenhum contexto ou detalhe sobre o agressor. “Até porque eu queria trazer o assunto da violência sexual no casamento para a roda de debate, não era necessariamente sobre expor uma pessoa.”
Ainda assim, recebeu mensagens intimidatórias do ex-companheiro depois que tornou o caso público. “Mas eu estava tão precavida e tão respaldada que ele não teve para como seguir com um processo.”
A denúncia, feita com cuidado, foi um marco na vida da atriz, que desde então recebe diversos relatos de mulheres que desejam, também, denunciar casos de abusos. Ela recomenda se assegurar de que há uma rede de apoio, assessoria jurídica e psicológica, quando possível, antes de agir.
“Cada vez mais percebo o quanto foi importante tornar isso público, pois é um debate que precisa acontecer. Mas você precisa falar sobre isso se precavendo porque já é uma vítima de situação de violência e abuso, seja ele psicológico, sexual, financeiro. Existe muita dor, raiva e vontade de colocar isso para fora, mas é importante se proteger para que você não seja revitimizada.”
* O nome foi alterado a pedido da entrevistada, para proteger sua identidade.