Música negra, branquitude e muita emoção – “A Voz Suprema do Blues”

Esperei muito por essa estreia da Netflix, com Viola Davis e Chadwick Boseman num mesmo cenário e não me arrependi. “A Voz Suprema do Blues” (Ma Rainey’s Black Bottom) traz Ma Rainey, conhecida como a mãe do blues, numa sessão de gravação num estúdio com a sua banda talentosa de homens negros, todos agenciados e produzidos por homens brancos (importante ressaltar).

O longa é uma adaptação da peça Ma Rainey Black Bottom, de 1982 escrita por August Wilson e se passa em Chicago na década de 1920, com questões sobre arte, religião, raça e a usurpação e exploração de artistas negros por produtores brancos.

As adaptações para que a peça coubesse na tv foram perfeitas e o filme passou a mensagem que deveria, além do entretenimento. Os diálogos entre os integrantes da banda de Ma Rainey são incríveis, cheios de emoção e simpatia. É possível perceber, mesmo sem conhecer a real história, que Gertrude Malissa Nix Pridgett Rainey foi uma mulher que precisou lutar contra um sistema que precisava do seu talento, porém não gostava de recompensá-lo, pois era uma mulher negra nos EUA em 1920. De início achei a personagem chata demais, até um pouco amargurada mas logo quando questões de sua vida pessoal e de artista são colocadas à mostra, fica fácil entender o seu comportamento e postura principalmente com seu produtor.

Ma Rainey – Imagem: ThoughtCo / Getty Imagens

Uma cena que me marcou muito foi uma fala de Ma Rainey sobre a indústria musical e como era a vida das pessoas negras na década de 20: “Se você é negro e pode dar lucro a eles, eles o aceitam, caso contrário é só um cachorro de rua.” Talvez essa frase poderia se aplicar a branquitude até os dias atuais, não é mesmo?

Nadra Kareen do ThoughtCo, ao descrever a biografia de Rainey ressalta que em sua breve carreira, começou a se apresentar no sul dos Estados Unidos, porém o sucesso veio com sua turnê pelo norte do país, principalmente em Chicago com sua banda denominada Wildcats Jazz Band e se apresentou com vários músicos famosos, inclusive Louis Armstrong. Já em 1928, a carreira de Ma Rainey desacelerou quando o blues que tocava “saiu de moda” e a sua gravadora (Paramount) não renovou seu contrato, apesar do lucro e da série de sucessos que ela levou à gravadora.

Imagem: Ma Rainey e banda – ThoughtCo / Getty Imagem

Em 2015 escrevi um pequeno texto sobre a usurpação do rock pela branquitude e o impacto disso nos artistas e em nós que consumimos e gostamos do ritmo. Na época fiquei me perguntando quantos artistas negros foram silenciados pela indústria cultural e caíram no esquecimento, enquanto artistas brancos fazendo o mesmo, às vezes até com qualidade inferior, fizeram sucesso impulsionados pela mesma indústria racista? Quando escrevi o texto, considerei o rock porque é um ritmo que gosto e que é extremamente elitista e embranquecido, mesmo sendo de origem negra, mas hoje percebo que se aplica em quase toda a indústria fonográfica.

Jun Alcantara em seu texto “Por que precisamos provar que a música é negra é negra?” afirma que:

“O Rock n’ Roll, simples vertente do R&B nos anos 40, entrou na mira dos empresários brancos americanos que viam no gênero um potencial para conquistar o público jovem nunca visto antes da música. O processo foi bem rápido: lançaram rostos brancos para reproduzir música negra. O resto foi consequência, já que tendo a nova opção musical para um público jovem, os donos de clubes e bares contratavam apenas músicos brancos para as apresentações (algo visto desde o início do Jazz, mas em menores proporções devido ao menor tamanho da indústria cultural da época). Com a dinâmica de mudança inerente à música negra norte-americana, sempre em constante desenvolvimento, e o processo de embranquecimento do Rock n’ Roll, pouco tempo depois o gênero já era visto pelo público branco como música tipicamente branca.”

O jazz, o blues, o soul, o rock, o pop e até o samba passaram por esse embranquecimento no mundo inteiro. O filme me fez lembrar que isso não ficou lá na década de 20, mas permanece ainda na década atual. Quantos artistas negros você vê na tv, em horário nobre e fazendo sucesso? Tocando nas rádios? Felizmente com a tecnologia, o uso da internet (principalmente das redes sociais) e o envolvimento de produtores e empresários negros, é possível ver pessoas negras sendo notadas por um número maior de pessoas, porém ainda com pouco incentivo das gravadoras, donos do dinheiro e mídia, que ainda são brancos em sua maioria.

Não sei como sair desse looping, mas talvez consumir e valorizar artistas negros enquanto ainda estão produzindo ajuda com que não caiam no esquecimento ou que sejam reconhecidos somente décadas depois de falecidos.

“A Voz Suprema do Blues” apresenta diálogos que nos marca, faz chorar e refletir, além e contar com talento e brilhantismo de Viola Davis (How To Get Away with Murder), Glynn Turman (How To Get Away with Murder), Colman Doming (Euphoria), Michael Potts (True Detective) e Chadwick Boseman (Black Panther) que infelizmente nos deixou muito cedo, mas encantou em todas as suas cenas. Entristece saber que não o veremos mais nas telas.

O filme foi dirigido por George C. Wolfe, escrito por Ruben Santiago-Hudson e produzido por Todd Black, Dany Wolf e Denzel Washington.

Vale cada segundo.

Imagem: Divulgação Netflix

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