O Jazz Bebop foi uma expressão intelectual e politizada, música que exigia altíssimo nível técnico para ser executada. Entre outras razões, o Bebop foi intencionalmente criado para que músicos brancos não fossem capazes de tocar, para que não roubassem o mérito e não faturassem dinheiro vindo da criação dos negros. Isso logo no início da década de 1940. O Cotton Club foi uma famosa boate de Nova Iorque, historicamente lembrada por apresentações memoráveis de Cab Calloway, Duke Ellington, Count Basie, Adelaide Hall, Dorothy Dandrige e outras dezenas de músicos importantíssimos da era Jazz Swing (executado por grandes bandas, criação anterior ao Jazz Bebop), dançarinos e outros artistas. O palco era negro, tinha negros executando a arte negra. No entanto as memoráveis apresentações eram marcadas por um detalhe: o clube era “white-only”. Apenas brancos podiam entrar. Mesmo os grandes artistas negros entravam pelo clube pela porta de trás, a de serviço. O primeiro negro a adentrar o Cotton Club foi o histórico gangster Bumpy Johnson: à força, empunhando armas de fogo e justo com outros criminosos, buscando um acerto com membros de gangues rivais. De um jeito provocativo, ficou orgulhoso de seu feito.
Por Jun Alcantara Do Obuli
No Brasil, o sambista pioneiro João da Baiana, era comumente detido pela polícia apenas por carregar seu pandeiro – sendo ele o introdutor do pandeiro no samba. Certa vez foi convidado pelo Senador Pinheiro Machado a tocar em uma de suas festas. João não compareceu e o Senador, ofendido, quis saber o motivo. Ordenou que João comparecesse ao Senado para dar explicações. Contou que havia sido preso na festa da Penha, por estar acompanhado de seu instrumento. O período pós-abolição da escravidão é marcado por leis que visavam outras formas de dominação da população negra, através de prisões arbitrárias e de perseguições às manifestações culturais surgidas nas comunidades negras. Fosse na música, religião ou vestimentas. Homens negros presos com seus ternos largos, característicos dos sambistas e malandro do período, tinham suas vestimentas estragadas ou recosturadas como forma de punição extra e deboche, enquanto aguardavam serem liberados da prisão.
A chamada “vadiagem” era a responsável pelo maior entra-e-sai de detidos na época, mais do que qualquer outro tipo de crime. Um jovem negro, ao ser parado pela polícia, tinha de mostrar logo de cara as pontas dos dedos. Se tivesse calos, indicava que tocava violão, e por isso era preso. Donga, outro pioneiro do samba, dizia que este era um crime muito pior do quê ser comunista. “O sujeito estava perdido! (…) Não era brincadeira, o castigo era seríssimo”. Sob o argumento de “Recebemos a denúncia de que aqui se toca samba”, policiais invadiam terreiros, prendendo os religiosos, músicos e quem mais estivesse lá.
Nos dias de hoje, o Rap se mostra o maior expoente da música negra, quando se fala em popularidade mundial. Em tempos de polarização política, o Rap tem se tornado palco para discussões acerca de raça. A negritude sempre foi uma das principais temáticas do gênero, mas dessa vez a raça está sendo debatida de outra forma: a quem o Rap pertence? Música tem cor? Só negros podem fazer? Mas mais do quê perguntas, são feitas afirmações: “o rap não pertence aos negros, música não tem cor”. Diante do contexto histórico apresentado nos parágrafos acima, uma afirmação dessas pode ser descrita como ofensa quando respaldada pela ignorância dos fatos ou mesmo como uma afronta racista. Para explicar melhor, voltemos à história:
O Rock n’ Roll, simples vertente do R&B nos anos 40, entrou na mira dos empresários brancos americanos que viam no gênero um potencial para conquistar o público jovem nunca visto antes da música. O processo foi bem rápido: lançaram rostos brancos para reproduzir música negra. O resto foi consequência, já que tendo a nova opção musical para um público jovem, os donos de clubes e bares contratavam apenas músicos brancos para as apresentações (algo visto desde o início do Jazz, mas em menores proporções devido ao menor tamanho da indústria cultural da época). Com a dinâmica de mudança inerente à música negra norte-americana, sempre em constante desenvolvimento, e o processo de embranquecimento do Rock n’ Roll, pouco tempo depois o gênero já era visto pelo público branco como música tipicamente branca. Criou-se então o que é simplesmente chamado de Rock, o gênero que mais fez dinheiro para a indústria pelo maior período de tempo. Hoje, podemos contar nos dedos os músicos negros que alcançaram sucesso comercial no Rock a partir dos anos 60. Sem exageros, podemos afirmar que os negros foram expulsos do gênero que eles mesmos criaram e desenvolveram.
Ainda sim, os poucos músicos negros que conseguiram se destacar no ambiente racista do rock, tiveram a capacidade de mudar os rumos de várias de suas vertentes. Jimi Hendrix definiu o que seria o rock moderno, em moldes estéticos que prevalecem até hoje. Se os Bad Brains, criadores do hardcore punk, fossem brancos provavelmente teriam o mesmo status e uma obra tão lucrativa quanto tem os Ramones, por exemplo. Não só pela contribuição dentro do punk, mas também pela importância no desenvolvimento de diferentes subgêneros do heavy metal ao longo dos anos 80. A banda Death antecipou a sonoridade mais madura do Punk Rock antes mesmo das bandas mais aplaudidas do estilo. Nos anos 80 e 90, tivemos o desgosto de ouvir bandas que usaram essa construção musical para espalhar mensagens nazistas, ajudando a erguer uma cena musical que mesmo com estrutura capenga quando comparado a grandes gêneros, ainda sim teve poder para se espalhar pelo mundo inteiro e propagar ideais racistas. Aguentamos Eric Clapton dando entrevistas em apoio à extrema-direita enquanto tocava frases de blues em sua guitarra.
Num contexto aparentemente menos agressivo, quem sabe que (pelo menos a) metade da população brasileira é negra e vê o perfil da esmagadora maioria dos músicos do Sertanejo, percebe que a chance de um negro ou dupla negra (ou até uma dupla que una um negro e um branco) conquistar o sucesso nesse meio é muito pequena. Diferente do quê vemos da década de 1980 para baixo, com duplas como Tião Carreiro & Pardinho, João Mulato & Douradinho, Pena Branca & Xavantinho, o casal Cascatinha & Inhana e muitas outras, quando o gênero ainda não havia conquistado o apelo mercadológico e o altíssimo faturamento de hoje. Olhando os artistas sertanejos de outrora fica fácil notar que os negros inegavelmente fizeram parte do processo de formação da música sertaneja como conhecemos hoje, mesmo que a imagem coletiva do artista sertanejo hoje seja a do homem branco – mais atualmente contemplando a participação de mulheres brancas, nas duplas da tendência do apelidado “feminejo”.
Em 2017 tivemos o desprazer de ouvir um rapper branco falar sobre “iludidão falando de minoria”. Assim vemos a importância da luta negra sendo desmerecida dentro de um gênero que tem em seu DNA a negritude, e que manteve esse assunto em pauta como sua maior expressão política, desde que fora criado. Ninguém quer impedir brancos de fazer música negra, isso nunca aconteceu em qualquer gênero da música afrodiaspórica. Ao contrário desse suposto proibicionismo apontado por quem vai de encontro a essas ideias, a história da indústria fonográfica e o ambiente de várias cenas musicais mostram que na realidade quem é proibido de adentrar aos circuitos são os artistas negros. É importante que nos questionemos: por que nossa luta está sendo desmerecida dentro de nossa própria casa? E por que estão questionando se a casa é mesmo nossa, quando fomos nós que limpamos o terreno, compramos o material e erguemos toda a sua estrutura?
E quem diz que a música é de todos, onde estavam quando apenas negros eram presos por carregarem um pandeiro? Onde estavam quando os clubes de jazz contratavam apenas músicos brancos para fazerem música negra? Quem defendeu os pretos que eram perseguidos e levavam porrada da polícia na São Bento e arredores, durante a edificação da cultura Hip Hop no Brasil? Em que lugares estavam quando os jovens negros que promoviam os Baile Black nos anos 70 e 80 eram investigados por órgãos de repressão da ditadura militar?
Quem faz música espanhola ou árabe nunca é questionado acerca da origem ou pertencimento dessa música. Quantos músicos de Tarantella foram confrontados sobre sua música não pertencer ao povo italiano, pois músicas não tem dono e nem cor? Ou quantos restaurantes japoneses foram acusados de promover separação – ou perguntados “mas desde quando só japonês pode fazer comida japonesa?” – ao se classificarem como restaurantes japoneses? Mas tudo fica diferente quando se fala em cultura negra, música negra. Por que o “pertencer ao negro” é um dos maiores problemas das sociedades racistas. Quando se fala em algo que o negro detém posse, onde o negro pode ser líder, chefe ou dono, os questionamentos e ataques parecem ser inevitáveis. É inaceitável que um negro possua, controle algo.
“O Racismo Negro no Brasil”, dossiê de mais de 400 páginas dos órgãos de repressão política do período da ditadura militar no Brasil. Baseados em argumentos de que a mistura no Brasil era uma bênção e que manifestações que tinham a união negra como fundamento eram subversivas, vistas como uma forma de racismo, pois tinham a intenção de destruir a suposta harmonia racial vivida aqui. Os Bailes Black nos anos 70 e 80 estavam entre os alvos citados. Espaços que promoviam a união entre jovens negros, dançando ao som da música negra e, parando o som no meio da festa, para fazer discursos sobre a negritude nos microfones. Motivo o suficiente para que organizadores, DJs e frequentadores fossem não só interrogados mas também torturados por agentes do governo. Ou seja, até institucionalmente podemos observar que a desracialização – a tentativa de prezar por uma falsa união onde raça não importa – foi usada como instrumento para destruir a luta antirracista promovida pela comunidade negra. Estamos num tempo, onde as situações descritas no texto continuam acontecendo em moldes diferentes, onde o genocídio negro é uma realidade e o encarceramento em massa é instrumento usado para exploração de mão-de-obra e captação de dinheiro público que enchem os bolsos de políticos e empresários.
Não podemos permitir que um discurso historicamente usado para interromper os avanços sociais conquistados por nós com muito sangue e suor, a custa de muitas vidas, ganhe de presente um microfone e venha acompanhado de instrumentais forjados com nosso sangue e suor. Não há nada injusto em querer colher os louros do que nós mesmos criamos. Querem que passemos a nossa vida toda produzindo para, no final, ocuparmos apenas os espaços que sobraram – que designaram pra nós. Não podemos aceitar isso. Queremos o mérito, o crédito e a recompensa financeira. Ouvir tanto Kendrick Lamar pra depois fingir não entender o quê ele quer dizer?