‘Na pandemia, esqueceram de proteger as mulheres indígenas’, diz professora sobre violência doméstica nas aldeias

A falta de dados estatísticos e de políticas públicas efetivas dentro da Lei Maria da Penha são fatores que favorecem a invisibilização dos casos de violência doméstica contra mulheres indígenas. Sem a atuação expressiva das autoridades governamentais, movimentos independentes lutam contra o feminicídio e pelos direitos básicos das indígenas. A professora e ativista Kunha Poty Rendy, que atua no movimento das mulheres Guarani Kaiowá kunhangue Aty, do Mato Grosso do Sul, é uma das responsáveis por mapear e promover rodas de conversas sobre o assunto em 15 aldeias do estado.

Integrante do movimento desde 2006, ela não imaginava que o aprendizado sobre como buscar ajuda em casos de violência poderia, um dia, valer tanto para si. Há exatos oito anos, Kunha Poty Rendy sofreu as primeiras agressões físicas e psicológicas, que culminaram na tentativa de feminicídio pelo seu ex-companheiro, com quem tem um filho de 9 anos.

Hoje, ainda sob constantes perseguições e processos de retirada da tutela da criança, a professora luta, mesmo desempregada, para pagar advogados que a ajudem a conseguir a guarda definitiva do filho. Devido à situação de vulnerabilidade, Kunha Poty Rendy depende de doações para manter suas necessidades básicas e as de seu filho. Para ajudar a família, basta entrar em contato através do telefone (67) 9634-2972.

Em entrevista a CELINA, a ativista fala sobre sua trajetória no movimento das mulheres Guarani Kaiowá kunhangue Aty e sobre os principais desafios durante as ações de conscientização, denúncia e proteção de mulheres indígenas vítimas de violência intrafamiliar.

CELINA: Por que você decidiu integrar o Movimento das Mulheres Guarani Kaiowá kunhangue Aty?

Kunha Poty Rendy: Na ditadura militar, todos os Guarani Kaiowá foram expulsos de suas terras tradicionais, que passaram a ser posse dos fazendeiros. O governo criou apenas oito reservas indígenas, onde nos colocou junto a outros povos. Nos anos 1980, o lugar já estava cheio, então decidimos voltar para as nossas terras. Fomos os primeiros a reconquistá-las.

Essa história de resistência se repetiu em 2005, quando, com 10 anos, eu entrei no movimento para lutar por território, saúde e educação. No ano seguinte, a partir dessa ação, surgiu o Movimento das Mulheres Guarani Kaiowá kunhangue, do qual faço parte até hoje, para que nós, mulheres da nova geração, começássemos a lutar por nossos direitos.

Quais as atividades que o Movimento das Mulheres Guarani Kaiowá kunhangue Aty desenvolve?

A nossa principal função é ajudar mulheres indígenas que sofrem dos mais diversos tipos de agressões: espancamento, tortura psicológica, moral e patrimonial, que são motivos de mortes de muitas companheiras. No movimento, eu sou responsável por fazer o mapeamento das violências em 15 aldeias do estado do Mato Grosso do Sul. Fazemos rodas de conversa, nas quais muitas mulheres trazem as vivências horríveis que têm dentro de casa.

A violência aumentou muito durante a pandemia, mas todo mundo ficou preocupado com o vírus e esqueceram da proteção às mulheres nas aldeias. Agora, o mapeamento tem acontecido pelo WhatsApp, mas em julho queremos retornar presencialmente para ajudar melhor a essas mulheres. Para isso, precisamos de doações para custear combustível e comida.

Como o movimento te ajudou a entender a situação de violência que viveu?

Eu sofri muita violência do meu ex-marido, da física até a tentativa de feminicídio. Faz oito anos que me separei dele, mas a perseguição continua. Agora, ele quer tirar meu filho de mim. Muito dessa violência vinha de ele não gostar que eu fizesse meu trabalho no movimento, dizia que lugar de mulher era dentro de casa. Mas foi no movimento que eu percebi o que vivia com ele.

Não consegui denunciar porque, na época, policiais falavam que eu estava fazendo a cabeça dos indígenas para recuperar as terras; falavam também que eu não era indígena,porque meu pai é negro e minha mãe é Kaiwá. Isso, inclusive, também foi um fator de agressão do meu ex-marido, que me dizia coisas ruins por eu também ter a cultura quilombola. Foi o Movimento das Mulheres Guarani Kaiowá kunhangue Aty que me ajudou a sair do ciclo de violência. Agora, eu ajudo outras mulheres.

Quais as dificuldades que uma mulher indígena enfrenta na hora de denunciar as agressões?

A chegada na delegacia é muito difícil. Muitas mulheres têm medo porque, a partir do momento que sofrem a violência, o agressor ameaça, falando que vai matá-la, ou a deixa acuada para que ela não diga nada. Há ainda a dificuldade do entendimento da língua e de locomoção até a delegacia. Antigamente, em algumas localidades, o Disque 180 funcionava, mas as medidas protetivas não funcionam. Por isso, nós já perdemos muitas mulheres. O que nós do movimento também buscamos é achar uma solução para isso, como casas de apoio ou abrigos, para que essas mulheres possam sair do lugar onde o agressor está. A maioria dos homens não cumpre as medidas e ameaça as vítimas.

Atualmente, por quais adversidades o movimento de mulheres indígenas passa?

O principal são as perseguições às mulheres indígenas. Aliados do governo Bolsonaro, além de disseminar atos machistas, impedem com frequência que falemos e lutemos pelos nossos direitos. A pandemia tem afetado ainda mais a violência contra mulheres nos territórios indígenas, porque o acesso à saúde e à proteção ficaram mais difíceis. Outro fator é a fome. As pequenas agriculturas familiares estão sendo ameaçadas e muitas indígenas passam necessidade. Algumas não recebem auxílio porque isso é feito em aplicativos, e elas não têm acesso à internet. Nós do movimento das mulheres indígenas tentamos lutar contra tudo isso, mas é muito difícil reverter essa situação.

Foto em destaque: Reprodução/ O Globo 

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