Não foi culposo, foi coletivo!

O que é a figura do estupro? O Código Penal é muito claro em prever no seu Art. 213 que constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso é estupro. Mas, não podemos esquecer da figura do estupro de vulnerável prevista no Art. 217-A que diz que ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos e o seu parágrafo primeiro que assevera que incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

Passada a fase de conceituação fica claro que podemos tratar, a grosso modo, de três tipos de estupro: o praticado com violência ou grave ameaça, o ato sexual com menor de 14 anos, e, por último o ato sexual com pessoa que não tenha o necessário discernimento para o ato ou que por algum motivo não possa oferecer resistência. E aqui é preciso falarmos que os dois últimos casos são considerados crimes mais graves pelo legislador com pena que vai de 08 até 15 anos, enquanto o estupro previsto no Art. 213 tem pena de 06 a 10 anos.

Superando um pouco a letra da lei, mas com base nela, vamos analisar a situação de uma mulher com base na alteração do seu discernimento e/ou que por algum motivo não possa oferecer resistência, casos assim são extremamente comuns, são conhecidos, no popular, como o ‘boa noite Cinderela’, quando a vítima é dopada para posteriormente ser abusada. Mas é importante dizermos que nem só de dopping consiste o estupro de vulnerável do § 1º, e, essa ressalva é importantíssima, pois muitas vezes a própria vítima se colocou na posição de vulnerabilidade e o agente aproveita a situação para o cometimento do ato sexual.

O que eu quero dizer? Que não precisamos que a vítima esteja numa situação vulnerável por conduta do autor, mas sim e unicamente que ela esteja nessa posição. Ou seja, vítima vulnerável não tem discernimento ou capacidade de resistência, logo ato sexual com ela é crime, é estupro de vulnerável, simples e claro assim!

Passada essa fase de configuração do crime vamos analisar o que seria dolo e culpa: quando o sujeito tem intenção (ou assume o risco) de praticar o ato podemos dizer que ele está agindo dolosamente, mas se ele cometeu o ato apenas por uma falta de cuidado, quais sejam: negligência, imprudência ou imperícia, ele estará agindo culposamente. Daí nasce os termos crimes dolosos e crimes culposos!

E para um crime ser culposo o legislador tem que ter previsto especificamente tal modalidade na lei, isto é, a culpa não é presumida pelo aplicador da lei, mas sim prevista legislativamente. Se não há previsão e o autor não agiu com intenção, com dolo, estaremos diante de um caso de atipicidade, ou seja, da não existência de crime.

Mas, a situação não é tão simples porque dentro das figuras dolo e culpa nós temos também o chamado dolo eventual e culpa consciente. E aqui, se vocês me permitem, vou usar um linguajar chulo que me ajudou a entender a diferença lá nos meus tempos de faculdade no fim dos anos 90: culpa consciente é quando fudeu e dolo eventual é quando é foda-se! Traduzindo: você age com culpa consciente quando você até prevê o risco do resultado, mas não o aceita e nem o deseja, você sinceramente acredita que ele não irá ocorrer… já o dolo eventual é quando você não deseja diretamente o resultado, mas não se importa com a sua ocorrência, ele não é querido por você, você até prevê que ele pode acontecer e não se importa diretamente, logo pratica a conduta sem se importar se vai ou não acontecer aquele resultado não desejado.

Entendemos as nomenclaturas? Ótimo, então vamos enquadrá-las no crime de estupro! Eu disse que crime culposo tem que ser previsto na lei, não foi? Pois bem, o legislador não previu a modalidade de estupro culposo, essa é uma figura que não existe penalmente, logo, todo o crime de estupro tem que ser doloso.

E aí você me pergunta: qual é o dolo no crime de estupro? Qual é a intenção do agente? O agente tem a intenção expressa de violentar sexualmente? E a resposta é clara: não necessariamente. A intenção aqui é o ato sexual, o autor pode não ter a intenção expressa de ser violento, mas a partir do momento que ele não respeita os requisitos legais ele acaba sendo e comete o crime. Que requisitos são esses? No caso especificamente do estupro de vulnerável é bem simples a partir do momento que ele desconsidera a incapacidade da vítima, seja ela momentânea ou não, e prática o ato ele comete o crime de forma dolosa! É simples! Ele sabia da alteração? Era visível? Então há o crime, a violência aqui é o aproveitamento da vítima numa condição onde ela ou não sabia o que estava fazendo ou onde não tinha condição de resistir ao ato.

Passada essa primeira fase acredito que todos já sabemos e conseguimos ver que não existe a conduta de estupro culposo. Que não existe fundamentação de absolvição com base em tal figura, que tal fala é incongruente e não faz parte do nosso ordenamento jurídico.

Desse modo quando falamos em crime de estupro estamos falando de dolo, seja ele direto ou eventual. Mas, eventual? Como assim? É o foda-se lá de cima, eu vejo que a pessoa está alterada, que possivelmente não tem total discernimento e/ou não tem capacidade de resistência e mesmo assim eu pratico o ato sexual, eu não tenho a intenção de macular a vontade da vítima, mas não me importo se ela tem ou não real condição de decidir pelo ato.

Conceitos jurídicos explicados podemos entrar no cerne da questão.

O título do artigo já deixa claro sobre o que estamos falando, sobre que caso estamos nos inspirando, mas, vou fazer uma observação aqui, por mais que eu tenha lido sentença, alegações finais, assistido a audiência, não estou tratando especificamente desse caso, estou dando aqui uma abordagem muito mais ampla que não é direcionada apenas para um caso específico.

Ah Bianca mas eu pensei que iríamos ler sobre o caso da Mariana… Então o que estamos falando aqui serve para o caso da Mariana, da Joana, da Paula, da Maria e de uma série de outras mulheres que diariamente são estupradas por um sistema patriarcal e misógino.

É claro que o debate veio a lume por causa da Mariana e eu nesse momento só posso dizer que lamento profundamente pelo o que Mariana passou, que queria poder abraça-la e dizer: eu acredito em você, eu lamento por você e eu espero que a Justiça seja feita! Mas como não posso fazer isso eu me pego aqui escrevendo e suplicando que outros aplicadores do Direito tenham mais tato, mais empatia, que sejam mais humanos e que não façam de um julgamento uma sessão de linchamento e humilhação de uma mulher.

Uma audiência sobre uma violência sexual sofrida por uma menina onde a única mulher presente é a própria vítima já é uma nova violência, essa menina precisava ter ali a sensibilidade e a sororidade de outra mulher, sororidade essa que também faltou a ela no fatídico dia do abuso sexual!

É completamente inadmissível que vejamos a moral e a honra de uma vítima de crime de estupro ser colocada em cheque num julgamento. Não estamos tratando da moral da vítima, mas sim de um crime sofrido, de uma violência sexual e em casos assim precisamos gritar para ver se as pessoas entendem ‘A VÍTIMA NUNCA TEM CULPA’! Não é a roupa, não é porque bebeu, porque sensualizou, porque já tinha transado com outros antes… não, nada disso é justificativa para a violência!

Meses atrás eu escrevi sobre a cultura do estupro e lá já falávamos sobre isso, sobre essa culpabilização da vítima, sobre a revitimização que ela sofre, sobre o quanto é sofrido… e hoje eu me pego aqui tendo que falar tudo novamente… falar o óbvio mais uma vez!

Aí você me fala: Ok Bianca, já entendi que não foi culposo, mas por que você fala que foi coletivo?

É simples, quando as mulheres passam por situações aonde os aplicadores da lei, que deveriam estar ali para proteger, para fazer Justiça, permitem a humilhação, o vexame, a pressão psicológica, o questionamento da honra, eles saem do patamar de representantes do Estado e entram ali no papel de algozes, de violentadores, eles estão violentando o pouco que restou de dignidade para aquela mulher, eles estão mostrando pra ela que se isso aconteceu é porque ela mereceu, é porque ela não se deu o respeito, eles estão invertendo o polo e fazendo a vítima virar a culpada e dizendo que o autor nada mais é do que um macho alfa, que praticamente ele agiu de tal forma forçado pela conduta da vítima. Em posturas assim o Estado abraça o criminoso e julga a vítima, ou seja, existe uma verdadeira inversão de papéis, uma cruel inversão, por isso eu digo um novo estupro da vítima, só que agora de forma coletiva e por aqueles que deveriam estar ali para buscar a Justiça.

Uma inversão pautada sim no patriarcado, na misoginia, no menosprezo pela figura da mulher, no pouco caso pela dor sentida.

Não pensem vocês que é fácil uma mulher reviver momentos de uma violência sexual, não, não é… e não é fácil quando ela o faz com toda assistência, com amparo, com cuidado, acompanhada de pessoas que estão ali para apoiá-la, mesmo nesses casos é difícil, é dolorido, é remexer em dores latentes, é ir no íntimo, é reviver cenas de horror.

Em minha vida profissional como Delegada de Polícia responsável por investigações de estupro eu já acompanhei muitos relatos de vítimas, já senti a dor das mesmas, já tive que parar oitivas para a vítima chorar, respirar, já tive que encaminhá-las para apoio psicológico, já tive que sentar do lado e segurar na mão para ela ter força para falar… e ver uma cena de fuzilamento me doeu, me fez ter vergonha do sistema, me fez pensar em todas as vezes que eu encorajei às vítimas a denunciarem e a seguirem adiante, e sentir medo de ter encorajado uma mulher a passar por tamanha violência moral e psicológica…

Por isso eu digo: Não, não foi só a Mariana que foi revitimizada, que sofreu uma nova violência coletiva, fomos todas nós mulheres, todas estamos nesse momento sentindo um pouco da dor da Mariana e mais ainda estamos sentindo o peso de ser mulher numa sociedade aonde a palavra de um homem vale mais do que a nossa, aonde apesar de todas as provas técnicas nossa palavra é diminuída e desvalorizada para dar voz a um homem que dentro de uma mesma investigação mudou sua versão de acordo com a conveniência conforme as provas foram surgindo.

Mas, a discussão do momento, pegando Mariana como grande vítima infelizmente, nos faz ver o quanto ainda somos diminuídas dentro de uma sociedade machista, o quanto a nossa sociedade arruma desculpas e inventa teses para proteger os seus ‘meninos’! O quanto é difícil ser mulher e ver sua intimidade ser analisada e julgada por homens!

Quando eu falo em estupro coletivo eu quero dizer que o circo foi armado, que uma nova violência foi feita, que a figura e a honra daquela menina foram ali violentadas por aqueles homens de forma conjunta, cada um com sua parcela, seja com postura ativa ou passiva, porque que fique claro não cabia postura passiva, cabia sim intervenção e proteção! Mariana não estava, ou ao menos não deveria, estar sendo julgada, não era a sua conduta que estava em questionamento, mas sim a do seu algoz, no entanto, o que assistimos foi uma execução da honra de Mariana e sim, essa execução foi coletiva!

E que fique claro, não é só a Mariana, ou diversas outras mulheres que diariamente passam por tal humilhação nas Delegacias e Fóruns desse nosso Brasil, que são novamente estupradas por esse sistema preconceituoso e machista, somos todas nós, todas nós mulheres fomos, somos e continuamos sendo estupradas todos os dias, todos os dias quando questionam nossas roupas, quando questionam nossas fotos, quando questionam o que bebemos, quando questionam por onde andamos, quando questionam o que fazemos, quando questionam com quem já transamos…

Nós somos estupradas todos os dias e já é hora de gritarmos, de nos rebelarmos contra esse sistema, é hora de nos unirmos e juntar pedirmos, lutarmos por Justiça, por Respeito!

Por isso eu digo: Mariana, Joana, Paula, Maria… eu também fui estuprada com vocês! Eu também sinto a sua dor e eu estou aqui para te apoiar, para segurar na sua mão e dizer você não está sozinha, eu acredito em você! E conclamo a todas que entrem nessa luta, já está na hora de nós mulheres exigirmos respeito!

Não quero aqui entrar no mérito da decisão, mas sim da maneira como foi tomada, existem mil maneiras de defender e absolver um acusado, mas a humilhação e o descrédito da vítima não é uma delas!

Então, por Mariana, por Joana, por Paula, por Maria eu grito por RESPEITO!

Delegada de Polícia Civil de Minas Gerais Atuação na Polícia Civil: · Titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher de Santa Luzia de março de 2013 à fevereiro de 2020 · Titular da 2ª Delegacia de Polícia de Santa Luzia desde julho de 2017 · Responsável pela Delegacia de Polícia de Conceição do Mato Dentro no ano de 2016 Experiência Profissional Anterior: · Advogada Criminalista no Rio de Janeiro de 2003 até 2013 Formação: · Graduada em Direito no ano de 2002 pela Faculdade Moraes Júnior · Pós Graduada em Direito Penal e Processo Penal pela UGF em 2004 · Residente Jurídica de Direito Criminal pela UERJ – 2005/2006 . Pós-graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global – PUCRS – 2020

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