Não me deem flores no Dia Internacional da Mulher

Não me dêem flores no Dia Internacional da Mulher. Ser mulher é um fardo que carregamos durante a vida, de cabeça erguida, mesmo nos momentos que parecem que não vamos aguentar carregar nossos próprios corpos em situações extremas, vividas ou presenciadas, de violência, morte, perseguição, estupro, assédio. Mas no fim de tudo, nós sempre nos carregamos.

Por Maynara Fanucci Do Brasil post

E às vezes, carregamos outras pessoas com a gente e tiramos forças de onde nem sabíamos que existia. Porque somos fortes, embora muitas ainda não tenham descoberto isso. Sexo frágil é uma ova. E ao longo da militância feminista, é muito comum ouvirmos mulheres dizerem que não precisam do feminismo. Eu não posso culpá-las, porque eu um dia também achei que não precisava. Até eu ter consciência de tudo o que eu sei hoje.

Hoje foi um dia cheio. Estava saindo de casa, e olharam para o meu vestido. Perguntaram:
– Mas você vai trabalhar assim?
– Assim como?
– Com esse vestido curto, oras.
– O que tem? Está um calor de 40ºC.
– Ele não cobre metade do seu bumbum.
– Até parece. Onde isso?
– Acima do joelho? Você não tem medo de sair na rua assim? O que vão pensar no seu trabalho?

Saí de casa porque estava atrasada e não dava tempo de continuar a discussão ou me trocar. Chegando no ponto, um mendigo se aproximou para pedir esmola. Eu tirei da minha bolsa algumas moedas e dei. Ele aparentemente achou que eu fosse dar mais dinheiro pra ele. Pegou as moedas e atirou contra mim. Saiu gritando que as mulheres deveriam morrer, e que se ele me encontrasse na esquina, ia me estuprar e bater sem dó. Fiquei envergonhada quando todas as pessoas que estavam perto de mim se afastaram e olharam assustadas, enquanto o homem se afastava.

Subi no ônibus, à caminho do trabalho. Quando desci, um homem assobiou pra mim e gritou, em alto e bom som, coisas sobre a minha vagina, sobre o meu corpo. Me senti suja, fingi que não vi, fiquei quieta. Tinham muitos homens por perto, nenhum parecia disposto a ficar quieto caso eu resolvesse me manifestar e xingar o cara, já que todos estavam rindo e comentando sobre mim.

Cheguei em um dos meus freelas. Os homens estavam comentando sobre uma foto de uma colega minha que estava no Facebook. Eu passei pelo computador e ouvi os comentários sobre o corpo dela. Dei bom dia e passei reto porque o meu telefone já estava tocando – e eu estava atrasada. Desliguei o telefone e os meninos me chamaram pra ver a tal foto no computador. Me levantei e fui dar um sermão neles, como eu sempre faço.
– Vocês são muito babacas e machistas.
– Nossa, que bravinha.
– Bravinha não. Eu só acho um absurdo vocês ficarem fazendo esse tipo de piada sobre ela.
– Alguém interrompeu a discussão.
– É que a Maynara é feminista, gente.
Todos riram.
– Ah, entendi.
– Eu sou feminista e vocês poderiam deixar de ser machistas, pelo menos perto de mim.

Dei as costas e eles ficaram bravinhos. Me sentei de novo na minha mesa, até que recebi um e-mail do coordenador de projetos, com o seguinte conteúdo: “Maynara, por ser feminista em um ambiente como o nosso, vai lavar os pratos de todos os homens do departamento durante um mês inteiro, se quiser continuar empregada”. Eu podia ter processado a agência. Mas enviei o conteúdo pro diretor e fim. Nem me dei ao trabalho de responder, e ele inclusive deve ter achado engraçado, assim como todos os outros quando ajudaram a escrever o e-mail.

Enquanto isso, recebo o vídeo de um homem fazendo um manifesto de repúdio a uma postagem minha na página de uma campanha que eu promovo, de empoderamento de mulheres e feminismo. Ele dizia estar sendo oprimido pelo movimento feminista e pelo homossexualismo (é, isso mesmo que ele disse) porque ele tinha o direito de expressar sua opinião e militar pelo machismo. Na hora, eu não sabia se ria ou chorava. No final, ele me chamou de feminazi radical e lésbica, sapatona com inveja do pênis dele. Ignorei o vídeo, mas é só uma das coisas que a gente acaba ouvindo durante a militância feminista. Abro a página da campanha para ver os comentários, e me deparo com a mensagem de um homem me ameaçando e chamando de “puta maldita”.

Pego o ônibus de volta pra casa e fico pensando como algumas mulheres podem achar que não precisam do feminismo. Mas como eu disse, não posso culpar ninguém, porque todas as mulheres são ensinadas a reproduzirem machismo, e muitas delas não têm consciência da misoginia da nossa sociedade, internalizada e enraizada. E neste meu primeiro Dia Internacional da Mulher depois da descoberta do feminismo, eu digo que não quero flores. Não quero flores no dia 8 de março. Não quero flores, quero que mulheres parem de apanhar em casa. Não quero carta de parabéns do convênio médico enquanto o cuidado ginecológico de mulheres for negligenciado e corrermos o risco de sofrer mutilação genital durante os partos. De ganhar “parabéns” no trabalho pelo “meu dia”, mas continuar recebendo e-mails machistas recheados de assédio moral. De receber um “parabéns” respeitoso pelo meu dia, enquanto me dão parabéns na rua pela minha bunda, ou pelos meus peitos. De receber felicitações na televisão através de propagandas emotivas, enquanto objetificam o meu e os corpos de todas as mulheres em suas campanhas.

Pra quem não sabe, o Dia Internacional da Mulher surgiu com as manifestações das mulheres russas por melhores condições de vida e trabalho, e que também se impuseram contra a entrada da Rússia czarista na Primeira Guerra Mundial. Porém, nos países ocidentais, a data foi esquecida por muito tempo e só foi trazida de volta pelo movimento feminista, em meados da década de 60. Hoje, a celebração se perdeu da sua verdadeira raíz, sendo hoje uma data meramente festiva e comercial. Sem pretensão nenhuma de trazer a memória das operárias grevistas do 8 de março de 1917, que lutaram por melhores condições de vida e de trabalho, as pessoas costumam distribuir “parabéns” e rosas vermelhas entre as mulheres. Mas eu deixo aqui uma campanha: Não quero flores. Quero respeito. Quero equidade. Quero direitos que foram tolhidos durante a desumanização histórica da mulher pelo patriarcado. E pra quem ainda acha que não precisa do feminismo, basta olhar à sua volta com um pouquinho de vontade de enxergar mesmo para perceber a realidade em que se vive.

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