Uma mulher negra pode desistir?

Quem constitui exceção nos ambientes que frequenta não costuma ter segunda chance

Quando recebi o convite para escrever esta coluna em alusão ao Dia Internacional da Mulher, me veio à mente a série de reportagens “Eu Desisto”, lançada pela Folha no começo do ano. Fiquei bastante impactada com relatos de situações que não fazem parte da vida da maioria das brasileiras como eu pelo simples fato de sermos negras.

Para além da ideia generalizada e, segundo o psicanalista Adam Phillips, equivocada de que desistir é sinônimo de fracassar, me peguei pensando na quantidade de coisas que jamais me permiti sequer cogitar em abdicar, por mais que me desagradem. Também lembrei do tanto que já quis abrir mão e do pouco que pude me dar ao luxo de deixar para trás e até hoje questiono se fiz a coisa certa. Afinal, quem constitui exceção nos ambientes que frequenta não costuma ter segunda chance…

Quem constitui exceção nos ambientes que frequenta não costuma ter segunda chance – Catarina Pignato

Em minha trajetória profissional, desisti de dois empregos e pedi demissão (uma vez em nome da sanidade mental, outra por conta da insanidade temporária) sem ter outro trabalho em vista. O custo da ousadia foi alto. Quem “fura a bolha” também não costuma ter rede de proteção.

E, para além das desigualdades que mantêm mulheres negras na base da pirâmide social, o mito da guerreira é mais um complicador. Longe de ser elogio, é um fardo que perpetua o roubo de nossa humanidade. Quem é forte e dá conta de tudo não precisa de acolhimento, carinho e proteção, não é mesmo?

Visitando comentários na série “Eu Desisto”, me deparei com a seguinte citação de Clarice Lispector: “A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano”.

Sintetiza bem a situação. Desistir não é escolha fácil. E, por libertador que seja, é opção para quem é visto e tratado como humano.

+ sobre o tema

PM paulista matou mais em nove meses do que no auge do confronto com o PCC

De janeiro a setembro deste ano, foram registradas 478...

(Não) Deu branco! Uma declaração sobre a conveniência da branquitude

por Joyce Souza Lopes "Narram que o negro somente...

para lembrar

Nós, Carolinas: a importância de mulheres das periferias narrarem suas histórias

Você conhece Carolina Maria de Jesus? Mulher, negra e favelada...

Ferguson: Missouri convoca Guarda Nacional à espera de decisão de júri

O governador do Estado americano do Missouri convocou nesta...

Uma supernova

No dia em que minha irmã nasceu, a Nasa...

Polícia algema Dr. Dre após confundir seu iPhone com arma

A semana não começou tão boa para Dr. Dre,...
spot_imgspot_img

Brasil: Relatório sobre Justiça Racial na Aplicação da Lei

Este relatório contém as conclusões do Mecanismo Internacional de Especialistas Independentes para o Avanço da Igualdade e Justiça Racial na Aplicação da Lei (EMLER,...

Jovens negros carregam traumas de reconhecimento fotográfico injusto

Em 2018, o porteiro Carlos Alexandre Hidalgo foi a uma delegacia para registrar um boletim de ocorrência por conta de um crime virtual que...

Casos de racismo aumentaram no futebol brasileiro; veja relatório

O Observatório da Discriminação Racial no Futebol divulgou nesta quinta-feira (26) o 10º Relatório da Discriminação Racial no Futebol, que é baseado em dados de 2023....
-+=