Aloizio Mercadante, Renato Janine Ribeiro e José Henrique Paim comentaram medida provisória e outros projetos que foram debatidos durante suas gestões.
Do G1
Ex-ministros que passaram pela chefia do Ministério da Educação nos últimos anos comentaram, a pedido do G1, a medida provisória de reforma do ensino médio, publicada pelo governo Temer na semana passada. Aloizio Mercadante, Renato Janine Ribeiro e Henrique Paim demonstraram preocupação sobre como a flexibilização do currículo pode, caso não seja bem delimitada, significar que alguns estudantes tenham, na prática, mais opções que outros, o que aumentaria a desigualdade educacional no Brasil.
Mercadante foi o último ministro da Educação da ex-presidente Dilma Rousseff. Ele esteve à frente do MEC em dois períodos: entre 2012 e o início de 2014, e entre setembro de 2015 e o início de maio de 2016, quando o então presidente em exercício, Michel Temer, anunciou o nome de Mendonça Filho para ocupar o cargo.
Janine, professor de ética e filosofia da Universidade de São Paulo (USP), foi ministro da Educação durante cinco meses – ele assumiu a pasta em abrilde 2015. Foi durante sua gestão que o governo federal anunciou a primeira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o documento sobre o qual as escolas e redes de ensino elaborarão seus currículos.
Henrique Paim, que assumiu a chefia do ministério em janeiro de 2014 e permaneceu no cargo até o fim do mesmo ano, é o ex-ministro que passou mais tempo atuando dentro do MEC nos últimos anos: entre 2004 e 2006, foi presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e, entre 2006 e 2014, ocupou o cargo de secretário-executivo do ministério.
Entre as gestões de Paim e Janine, o cargo de ministro da Educação foi ocupado por Cid Gomes, que permaneceu durante menos de três meses à frente da pasta.
Preocupação com a desigualdade
Os três ex-ministros afirmaram que parte das mudanças incluídas na medida provisória de 23 de setembro contempla discussões que já eram feitas há anos dentro do Ministério da Educação, e também na sociedade. A flexibilização do currículo é um dos exemplos. Porém, os três afirmaram que as mudanças só podem ser implementadas se professores e estudantes forem incluídos no debate. Eles também afirmaram que o texto da medida pode dar margem ao desenvolvimento de currículos muito distintos entre os estados e, assim, falhar na redução da desiguladade educacional.
“Está sendo dita uma coisa, que o aluno poderá escolher a sua opção, mas ele vai escolher a opção dentro do leque que a rede oferecer. Se uma rede escolher oferecer um leque enxuto, ele não tem opção.”
(Renato Janine Ribeiro)
“Ainda não pude estudar tudo, mas em alguns pontos dá para ter uma posição”, afirmou Janine ao G1. “No discurso público que está sendo dito, o aluno é quem vai escolher [o itinerário formativo]. Mas, na prática, a escola só precisa oferecer uma ou duas opções. Então, se o estudante morar em São Paulo, talvez ele tenha todas as opções. Mas é possível que ele tenha que mudar de escola para fazer isso. Se morar no Ipiranga, talvez tenha que ir para uma escola na Vila Mariana. Não é tão fácil assim. Mas, se morar em cidade pequena, ele não pode escolher. Então está sendo dita uma coisa, que o aluno poderá escolher a sua opção, mas ele vai escolher a opção detro do leque que a rede oferecer. Se uma rede escolher oferecer um leque enxuto, ele não tem opção. Porque são as redes estaduais que vão calibrar isso.”
Para Paim, reformar o currículo passa por garantir que todos os estudantes brasileiros tenham acesso ao mesmo conteúdo básico para que tenham uma mínima formação de qualidade. “Toda a discussão da Base Nacional Comum, e eu tive a oportunidade de fazer esse debate também, envolve uma preocupação em reduzir a desigualdade do país. Na medida em que tenho que definir o que o estudante tem que aprender a cada final de ano em que ele vai frequentar na escola, seja na educação infantil, no ensino fundamental ou no ensino médio, eu consigo fazer com que aqueles estados que têm mais dificuldade de elaborar um currículo, fazer essa discussão mais aprofundada, estar envolvendo toda a comunidade educacional, tenham a oportunidade de estabelecer uma meta, uma diretriz pra sua rede e suas escolas.”
Ele explicou que, caso as redes fiquem livres para decidir o que fazer com metade da cara horária do ensino médio, isso pode dar margem para que as redes de ensino mais frágeis fiquem ainda mais defasadas. “Se nós não fizermos um processo de alteração do ensino médio que possa ter uma atenção especial para esses estados que têm mais fragilidade, que têm mais dificuldade de desempenho, e sem também um programa de formação de professores, podemos ter tendência de redução de conteúdo justamente para as pessoas que precisam mais, que precisam ter uma melhor formação”, afirmou Paim.
Aloizio Mercadante, que se pronunciou sobre a medida provisória em um comunicado divulgado para a imprensa, afirmou que “a oferta de itinerários alternativos e a eleição de disciplinas opcionais pelo estudante, sem a fixação do que deve ser oferecido a todos como dever do estado, vai legalizar a desigualdade de oportunidades de aprender”. O ministro disse que o texto, do jeito que foi publicado, representa “revestir com a norma legal a desigualdade de oportunidades de aprendizagem, o que, na pratica, atinge todos os brasileiros, especialmente, os mais pobres”, e afirmou ainda que “a MP fala em dialogar com o interesse dos estudantes, nada mais consensual. Porém, delega as secretarias estaduais de educação, que possuem condições extremamente heterogêneas, a completa liberdade para definir os itinerários formativos e as disciplinas optativas. Essa medida representa o risco concreto de um verdadeiro apartheid escolar no Brasil”.
Debate sobre o ensino médio dentro do MEC
De acordo com Mercadante, a nova lei passa por cima de debates que já estavam em andamento. “A proposta da BNCC já previa a flexibilização da grade curricular para abrir mais espaços para a inovação e as especificidades regionais, sempre dialogando com os interesses dos estudantes. Definia novos itinerários formativos, incluindo a formação técnica e profissionalizante. Apontava, ainda, que era necessário superar a estrutura enciclopedista do ensino médio. Entretanto, garantia que 2/3 da carga horária seriam de matérias obrigatórias, para assegurar o mesmo direito de aprendizagem de todos os estudantes do país. A proposta que estava em construção procurava preservar uma formação científica e humanista para os estudantes, não fechando o caminho de oportunidades que o Enem, a política de cotas para as escolas públicas nas universidades e institutos federais, o Prouni e o Fies asseguram como acesso ao ensino superior”, escreveu o último ministro da Educação de Dilma.
“A proposta da BNCC já previa a flexibilização da grade curricular para abrir mais espaços para a inovação e as especificidades regionais, sempre dialogando com os interesses dos estudantes. Definia novos itinerários formativos, incluindo a formação técnica e profissionalizante. Apontava, ainda, que era necessário superar a estrutura enciclopedista do ensino médio.”
(Aloizio Mercadante)
Segundo Janine, nos meses em que ele esteve à frente do MEC, os especialistas e técnicos do ministério estudavam o projeto de lei 6840/2013, de autoria deputado Reginaldo Lopes.
“Tinha uma comissão [no Congresso Nacional] que durante dois anos analisou a questão, e em função disso chegou a um projeto. É uma coisa que foi legal, um projeto que deveria ser mudado bastante, evidentemente, porque nada fica pronto de primeira. Mas era um projeto interessante, era esse o projeto que chegou às minhas mãos. Em função disso o MEC ia discutir [a reforma do ensino médio]. O lado bom disso é que nem sempre a Câmara faz um trabalho tão criterioso a ponto de virar projeto de lei, muitas vezes recebe projetos prontos”, explicou Janine.
Paim lembra que “a questão do ensino médio sempre foi tema relevante e urgente no MEC e no país todo” e que, a partir da aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), o Ministério da Educação, na sua época, “vinha fazendo uma discussão não só sobre a questão do ensino médio, mas também envolvendo o fundamental, trabalhando fortemente na Base Nacional Comum, que é o que, na realidade, sustenta todo o processo de mudança curricular no país, porque vai refletir sobre os currículos de todos os estados e municípios, documento essencial para pensar na melhoria da qualidade no país”.
Medida provisória
Os três ex-ministros discordam da proposta de reformar a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) por meio de uma medida provisória. “Embora o tema seja urgente, a medida provisória talvez não seja o caminho mais adequado para que a gente possa fazer alterações necessárias no ensino médio”, afirmou Henrique Paim. “A maioria das alterações estão sendo realizadas na LDB, e a LDB é uma lei estruturante. Em geral, debates assim são feitos no âmbito nacional, com audiência pública. A discussão da Base Nacional envolveu seminários, uma plataforma onde vários educadores puderam dar sua opinião.”
“Embora o tema seja urgente, a medida provisória talvez não seja o caminho mais adequado para que a gente possa fazer alterações necessárias no ensino médio. A maioria das alterações estão sendo realizadas na LDB, e a LDB é uma lei estruturante. Em geral, debates assim são feitos no âmbito nacional, com audiência pública.”
(Henrique Paim)
Mercadante classificou como “arbitrário” o modo como a reforma foi apresentadoa. “Arbitrariamente, o campo curricular obrigatório foi reduzido a 50% e anunciado que seriam eliminadas disciplinas como espanhol, educação física, artes, filosofia e sociologia. Com a previsível reação contrária a equipe logo desmentiu, mas a verdade é que as disciplinas obrigatórias foram reduzidas para 50% da carga horária, sem respeitar a convergência democrática construída no projeto da BNCC”, afirmou ele, em nota. Para o ex-ministro, “é indispensável que estabeleçam parâmetros nacionais mínimos para os itinerários formativos e currículo optativo”.
Renato Janine Ribeiro também concorda que há trechos da medida provisória que ficaram pouco claros e precisam de melhor explicação. “Por exemplo, nessas áreas de ênfase, uma é matemática. Mas matemática é uma matéria só. Escolher a ênfase em matemática vai ser exatamente o quê? Seis, oito, dez, 16 aulas por semana? Não vai poder ter muito mais do que cinco. Então, uma ênfase em matemática, o que quer dizer? Não está claro, não está dito. Talvez isso acabe se regulamentando de outra forma”, diz ele. “Mas tudo isso indica que não é a medida provisória o melhor esquema, entende? Porque essas coisas seriam resolvidas nessa orientação, então não tem necessidade de usar esse instrumento. Acho que quiseram promover uma solução rápida, alguma coisa assim, mas não vejo essa necessidade. A gente tem pressa, mas educação demora, não é uma coisa que é tão rápida assim.”
De acordo com Paim, o grande problema de se promover uma reforma por meio da medida provisória é a dificuldade de garantir que as mudanças efetivamente saiam do papel. “Sem ter envolvimento, não vamos ter efetividade de qualquer ação de melhoria da qualidade da educação. Especialmente no ensino médio, que precisa de fato mobilizar todos os gestores e educadores. Esse é o grande desafio que vamos ter pela frente: organizar esse processo, mobilizar os educadores, professores, toda a comunidade educacional”, afirmou ele ao G1.