A divulgação das imagens que mostram João Alberto Silveira Freitas ser espancado até a morte dentro de um Carrefour em Porto Alegre fez o empresário Crispim Terral, 35, reviver a violência sofrida por ele e filmada há quase dois anos. Policiais o agrediram na frente da filha em uma agência da Caixa em Salvador. Terral ficou por quase cinco horas na agência para resolver um saque indevido de R$ 2 mil de sua conta corrente.
“Sou vítima e sobrevivente desse sistema racista que mata o nosso povo diariamente. A violência se repete e eu fico pensando: até quando vai acontecer?”, questiona Terral, “Podia ter sido eu ali e quase foi”.
O sentimento de indignação e revolta revivido no último dia 20 de novembro é compartilhado por outras vítimas de agressões em shoppings, bancos e supermercados ouvidas pela reportagem. Elas narram os problemas fúteis que culminaram em violência física ou psicológica.
Espera desmesurada, abuso de autoridade
No caso de Terral, o problema começou em novembro de 2018, quando o empresário percebeu a retirada de R$ 2.056,00 de sua conta bancária na Caixa. Foram três meses sem solução até que ele retornou uma vez mais a sua agência no dia 19 de fevereiro de 2019.
“Tirei a senha às 10h36 e aguardei como qualquer cliente. Sem resolver meu problema, o funcionário que me atendia começou a atender outras pessoas na mesa ao lado e me deixou esperando por mais de quatro horas”, diz Terral.
Ao notar, ele se dirigiu à mesa do gerente, que também não deu a devida atenção ao problema. Cansado, o empresário anunciou que só sairia da agência após o reembolso do valor. O gerente reagiu e chamou a guarda do local, que tentou levar todos até a delegacia para resolverem o problema lá.
“Foi nesse momento que o gerente falou que só iria se eu fosse algemado. Ele disse: ‘eu não faço acordo com esse tipo de gente'”, relembra o empresário. Terral conta que os guardas não possuíam algemas, mas pediram para alguém trazer.
Eu já estava cansado, com fome, quase indo embora. De repente, um policial veio pelo lado esquerdo e me deu um mata-leão. O que dói na alma até hoje é lembrar o grito de socorro da minha filha, que ficou em pânico. A pior parte foi passar essa humilhação diante dela.
A filha de 15 anos foi encontrar o pai porque combinaram de passear pelo centro. Durante a agressão, ela chorava e pedia para que os guardas parassem. Após o vídeo repercutir na internet, o gerente da agência e a gerente da conta foram afastados e desvinculados da Caixa. Oito meses após o caso, o Ministério Público da Bahia denunciou os policiais envolvidos na abordagem por abuso de autoridade e constrangimento ilegal.
Terral entrou com duas ações, uma contra a Caixa e outra contra o gerente e os policiais. Agora, aguarda julgamento. “O sistema é lento, mas eu acredito que a justiça será feita”, afirma. O empresário acredita que houve racismo por parte do gerente por pedir que o algemassem e por usar a expressão “esse tipo de gente”.
Procurada pelo UOL, a Caixa afirmou repudiar todas as atitudes de preconceitos relacionadas à origem, raça, gênero, cor, idade, religião, credo, classe social, incapacidade física e quaisquer outras formas de discriminação.
Relógio comprado, atitude suspeita
Em agosto deste ano, um jovem negro foi perseguido, encurralado e imobilizado no chão da escadaria do shopping Plaza na Ilha do Governador, no Rio, após ser violentamente abordado por dois homens identificados como policiais militares.
Matheus Fernandes, 18, estava na loja Renner para trocar um relógio de R$ 300 que comprara para o Dia dos Pais quando notou estar sendo perseguido pelos homens.
Segundo Fernandes, ambos o acusaram de roubar o relógio. Um vídeo gravado por outros clientes do shopping mostra que, após ser questionado, um dos agressores diz: “a gente chamou ele para trocar uma ideia porque houve uma atitude suspeita”.
A Renner informou que os homens não trabalhavam para a empresa. Já o Plaza admitiu que os homens prestavam consultoria em segurança para o centro de compras, e foram afastados após o ocorrido. O caso é investigado pela 37ª DP como crime de racismo, a suspeita é que a desconfiança teria como motivo a cor da pele do jovem.
Ter uma atitude suspeita é justificativa recorrente para abordagens violentas mesmo a crianças. Em outubro deste ano, uma garota negra de 11 anos, cujo nome será protegido, foi acusada de roubo e obrigada a levantar a blusa para comprovar sua inocência.
A garota foi sozinha ao supermercado comprar pipoca. Um funcionário de uma loja de doces UFA Atacadão no Bairro da Penha, na zona norte do Rio, desconfiou quando ela guardava o celular no bolso de trás da calça enquanto equilibrava os pacotes nas mãos.
A polícia se negou a ir até o local e orientou a família a fazer boletim de ocorrência online. “Houve uma omissão da polícia. A constituição prevê que é dever da família, da sociedade e do Estado proteger a criança. Após a abordagem, a menina começou a chorar e se sentiu constrangida. Mesmo diante desse pedido de socorro da vítima, a polícia se recusou a cobrir a solicitação”, conta o advogado da vítima Oderban Fernandes, 37, que registrou a ocorrência.
A Polícia Militar do Rio nega que tenha havido negligência e diz que o boletim online tem o mesmo valor do registrado presencialmente. O UFA Atacadão afirmou que repudia “qualquer desnível moral”, mas não identificou “nenhum ato de desagrado ou discriminação” ao verificar imagens do circuito interno de vídeo.
Perseguição no supermercado
Aos 35 anos, o empresário Terral conta ter enfrentado perseguições como essas ao longo de toda sua infância e, hoje percebe que as ocorrências eram sinais do racismo. “Já fui seguido diversas vezes em estabelecimentos porque minha presença era identificada como uma ameaça. Eu achava que isso era natural, mas, depois desse acontecido na Caixa, despertei para minha infância e adolescência. Percebi que isso sempre aconteceu e a motivação era o racismo”, diz.
Situações adversas em agências bancárias também são algo comum para o cientista político e produtor cultural Márcio Black, 41, coordenador do programa Democracia e Cidadania Ativa na Fundação Tide Setúbal. Morador de Perdizes, bairro de classe média alta de São Paulo, Márcio conta nunca ter sido agredido, mas sempre passar por constrangimentos.
Já teve situações em que minha mulher, que é branca, passou pela porta giratória, com o celular e tudo mais. Mas eu, sem nada, não consegui entrar. Isso mostra que existe seleção ali na hora de destravar a porta.”
Márcio Black, produtor cultural
O cientista político conta que, de tanto ser seguido por seguranças em supermercado ou shoppings da região onde mora, começou a fazia piada com a situação.
“Eu vou até o segurança que está me encarando e pergunto qual marca de suco ele gosta mais. Embora hoje eu consiga usar o humor, o que eu passo não deixa de ser uma violência psicológica. É uma violência o fato de você não conseguir entrar no supermercado do seu bairro e andar livremente para realizar suas compras porque tem um segurança desconfiando de você”, diz.
No começo da semana, o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro instaurou um inquérito civil para convocar as associações de supermercados (Abras), shopping centers (Abrasce) e bancos (Febraban) para apurar e discutir medidas para combater o racismo estrutural promovido pelas empresas de segurança privada contratadas.
Economicamente promissor, o segmento movimenta cerca de R$ 33,7 bilhões no Brasil e, de acordo com a Polícia Federal, o total de vigilantes na segurança privada é de 545.447 — os dados são os mais recentes, de abril de 2020.
Nenhum cidadão, branco ou negro, merece ter a vida tirada com aquela crueldade. Depois de George Floyd [norte-americano negro morto após um policial se ajoelhar sobre seu pescoço], aquela frase ‘eu não consigo respirar’ ficou registrada. Eu me senti exatamente dessa forma quando aconteceu comigo, então consigo me colocar no lugar de George e de João. É muito doloroso
Crispim Terral, empresário baiano