O dia mais triste do ano

Levantou às duas e quarenta da matina, tentando esquecer que dormira apenas duas horas atrás com o choro de Julinha. Lavou-se em banho morno, com o rosto deitado, deixando que a água lavasse seu sono.

Rapidamente cobriu o corpo com a roupa do dia anterior, esquentando as partes gélidas de suas pernas. Foi até a cozinha, picou alho, cebola e pimenta. Pegou sua colher de pau que sempre a acompanhara naquele horário, fritou o alho na gordura, botou o arroz e o fez. Na panela de pressão cozinhou e temperou o feijão. Passou pano no chão, limpou o fogão e colocou ração para o cão.

Com nó na garganta e vontade de chorar diária, estendeu as roupas úmidas, torceu nas mão frientas os lençóis que estavam de molho e os compôs no varal colorido. Desligou o feijão, conferiu o gás. Pegou sua bolsa. Se dirigiu ao quarto e com carinho beijou suas três filhas. Tomou ar de coragem. Era a força para mais um dia. No frio e no vento forte da cidade de São Paulo, trancou o portão, pediu ao sagrado que cuidasse das meninas.

Olhou o relógio, ainda eram três e meia. Hoje não perderia o ônibus. Com passos apertados chegou ao ponto e o avistou na esquina, estava chegando bem rápido. Subiu. Cumprimentou Sr. Zé, passou a catraca, os bancos ainda estavam vazios.

Escolheu o lugar de sempre e sentou-se no canto da janela, onde encostara a cabeça. Acordou no ponto final. Abriu os olhos e a noite já denunciava que amanheceria a pouco. Desceu do ônibus e o calor do corpo das pessoas que passavam quase que correndo já acelerava seu próprio ritmo.

Às pressas, as catracas do trem eram giradas com certa ignorância e brutalidade. Ali já haviam milhares de companheiras e companheiros que compartilhavam a mesma rotina matinal. Aos empurrões e reclamações se misturavam e apertavam.

Poucos tinham a oportunidade de sentar-se. Naquele dia não teve sorte. Foi de pé. Passaram-se quarenta minutos, o vagão estava estufado e pedindo licença conseguiu sair da lata retangular. Era hora de pegar o metrô.

Transferencia… Pelo menos esse transporte público fazia menos ruído das rodas passando entre os trilhos. Não ensurdeceria. Mais seis estações de pé naquela lata lotada e os pés já começavam a doer. Outra transferência. Cada vez lotava mais. Pensara, imaginariamente, se as pessoas não poderiam espremer-se como laranjas, tornando-se suco. Riu. Olhou por entre as brechas das cabeças e avistou o nascer do sol.

O relógio já marcava cinco e trinta e cinco. Transferência. Mais uma estação. Pronto! A última transferência. Outra estação. A voz que saia das caixinhas de som dizia em duas línguas, “Estação Hebraica-Rebouças. Desembarque pelo lado direito do trem”, a segunda língua não entendia. Pra que inglês? Nem sei disso aí. Saiu da lata pela última vez naquela manhã. Atravessou a catraca, o sol já estava alto.

Andou mais dez minutos, passou na padaria comprou uns pães fresquinhos e seguiu até o prédio em que trabalhava. Lá subiu o elevador de serviços. Vigésimo terceiro andar. Depois da porta, abriu as longas cortinas que cobriam os rodapés das paredes. Colocou a água do café, retirou a mesa de jantar do dia anterior, colocou ração para a cachorra. Foi ao banheiro da lavanderia trocou suas sandálias pelo calçado confortável de sempre.

Mandou mensagem para as meninas para saber se lá estava tudo bem. Elas já estavam acordadas, iam para a escola, tudo sob controle. Colocou o celular no silencioso e então encostou a bolsa no canto esquerdo da parede abaixo do gabinete.Voltou à cozinha. Lavou a louça, passou pano no chão e torrou   e passou o café também. O cheirinho invadia todo o ar.

Cláudia ascendeu na sala. Bom dia, querida. O cheiro está bom. Bom dia, dona Cláudia. O café está pronto. Vou colocar a mesa, pode acordar o Sr. Pedro. Cortou as frutas, fez suco de laranja, torrou alguns pães, colocou os frescos na tigela de madeira que a pouco tempo chegara da Malásia. Finalizou com manteiga, requeijão e queijo branco. Apertou a campainha de sino que ficava na bancada da cozinha, anunciando que a mesa de café da manhã estava posta.

Antes que eles chegassem, para que não soasse desrespeitoso, tomou três goles do café, umedecendo a boca seca e amarga com o líquido dos deuses apreciando o sabor do grão torrado e moído na hora. Sentaram-se à mesa. Os dois. Eles combinavam, pensava. Nem parece que são desse país, não têm cara de povo brasileiro, sabe? Então foi ao quarto do casal, como todos os outros dias, não gostava de ficar na cozinha enquanto eles conversavam, sentia que estava incomodando.

O ar condicionado gelava as grossas e grandes cobertas que mal conseguia dobrar com seus braços. Abriu as janelas, forrou a cama, tirou pó, recolheu as roupas sujas. Atrás do grande espelho do lado direito estava a academia da patroa. Arrastou o espelho e passou pano com álcool nos equipamentos. Pensara sempre que nunca precisaria daquilo, já que sua vida era a própria academia. Querida! Já vou dona Cláudia. E apressou-se.

Vou precisar resolver minhas coisas hoje, o dia será corrido. Não esqueça do almoço das crianças. Nada de fritura por favor. Nem açúcar no suco. O motorista vem buscá-los dez pra uma e os traz perto das cinco. Se a Florzinha vomitar a ração me liga imediatamente. E ah, a tarde vêm uma costureira tirar as medidas da cortina da sala, pode deixar subir e anote o valor. Ela já sabia de pelo menos a metade daquela ladainha de cór há cerca de onze anos, desde que o mais velho, Arthur, nasceu. As cortinas trocavam a cada três meses. Nove mil reais. Era tecido pra cobrir rainha da Inglaterra e seus filhos, nera?!

Diacho… Se esse ano pagassem um pouquinho a mais no final do ano quase seu salário acumulado dava pra comprar a tal da cortina. Riu. Que cortina o que… Se desse pra fazer alguma coisa eu perguntava era pras filhas o que elas queriam de natal, dava uma reforminha na cozinha de casa… Ok, querida?! Sim, senhora. Afirmou assustada, estava era sonhando acordada, de pé na porta, com a cara de boba enquanto eles ainda estavam ali.

Apressou-se e voltou ao quarto terminando o que começara. Mas logo saiu para que os donos ocupassem o espaço. Na cozinha recolheu a mesa do café, lavou as louças. Seguiu até a lavanderia e separou as roupas por cor. As brancas lavava a mão, com sabão de coco. Lembrava toda vez que quando sua primeira filha nasceu, teve o luxo de dar banho nela com um sabão parecido com aquele… Coisa chique, né? “Sabão de coco”…

Enquanto lavava as roupas, imaginava coisas, rememorava sua vida, lembrava das meninas, queria era estar lavando as roupinhas delas. O celular vibrou e ela não viu. Vibrou cerca de quarenta minutos. Estava dedicada ao serviço. Ouviu a porta bater e sabia que os adultos já saíam do apartamento. Após estender as roupas preparou o balde com água e sabão, o pano e foi limpar as janelas da varanda. Por dentro e por fora.

O lado de fora sempre dava a sensação de que poderia ser seu último afazer da vida. Mas naqueles dias precisava esquecer o medo de altura, em casa tinha gente pra cuidar, medo de quê? E lá foi. Os ventos estavam fortes, não olhava pra baixo de jeito nenhum. Não podia ter marca de pano ou de má limpeza que dona Cláudia reclamaria. Preferia seu silêncio aos blablabla de gente rica fresca. Ali no alto não podia imaginar muito. Era precaução e atenção. Após uma hora e meia terminou. Novamente cortou frutas, preparou o café da manhã das crianças e às acordou. Bom dia, preciosa. Bom dia, príncipe. Vamos levantar pra comer? Cortei morango do jeitinho que vocês gostam. Vamos? A pequena abraçou-a com carinho e com um largo sorriso… Que preguiça, tia.

Queria ficar aqui com você o dia todo. Arthur pulou da cama, tacou-lhe um beijo na bochecha. Estava animado, hoje teria aula de judô depois da escola. Desligou o ar condicionado, puxou as cortinas, abriu as janelas.  Enquanto eles sentavam à mesa cada um com seu celular assistindo desenhos e vídeos, ligou também a tv da lavanderia para escutar as notícias da manhã.

Voltou a cozinha para fazer o chocolate quente e ouvia tragédia novamente, como nos outros dias. Mas qual era a de hoje, heim? E ouviu o nome de seu bairro. Assustada, largou o chocolate e correu para a frente da televisão. Paralisada, como quem sentia o corpo desfalecer enxergou o portão de sua casa. Piscou os olhos e coçou-os algumas vezes. Era sua casa. Seu portão, que a pouco acabara de trancar. Com tremor, correu para o celular… quarenta e sete ligações. Desesperou-se para saber o que estava acontecendo, imaginou o pior.

Ligou de volta e aos prantos sua filha filha do meio, Carol tentava explicar que ao sair de casa para ir para a escola uma bala perdida saída da arma de um policial atingiu a mais velha, Letícia. Ela estava viva, ainda no chão. Rapidamente, num desespero que nem lágrima saia, ligou para Cláudia explicando o acontecido e dizendo que deixaria as crianças na vizinha. Cláudia prontamente negou e pediu que esperasse, mas nada no mundo era mais importante que suas filhas. Então assim o fez. Pediu desculpas às crianças, explicou a situação e os deixou com Eliete, companheira de trabalho do apartamento vizinho. Pegando metrô demoraria demais. Pediu um carro por aplicativo, quase duzentos reais. Não importava, passou no cartão de crédito.

Sorte que ainda tinha. Implorava ao motorista que corresse como se fosse sua filha. Sorte era que aquele horário não era de pico. Chegou em uma hora e vinte. Sua filha ainda estava ao chão. Coberta com um tecido. Desceu do carro aos gritos enquanto a multidão de afastava. Retirou o pano e segurou-a em meio ao sangue, já frio. Lembrou do primeiro banho, da primeira roupa. Lembrou da luta.

Lembrou em questão de segundos da companheira de vida, apenas 12 anos mais velha que ela. Chorava sem perguntar, sem querer saber. Chamava-a pelo nome e gritava sua filha aonde é que sua consciência estivesse. Beijava a testa, a boca, a bochecha, aos mãos. E a multidão sentia sua dor. Era dor descomunal. Gritava aos santos pedindo por socorro. A chuva começava a cair. Era o luto de todas suas ancestrais. Eram lágrimas de chuva. Ajoelhou-se, olhou aos céus, com a mão na cabeça de sua filha orava como se fosse seu fim.

Sentiu o puxar nos braços e vozes pedindo que saísse de cima do corpo. Corpo não! É MINHA FILHA! Dois gritos vinham por trás e abrançando-a sentiu o vazio de três mulheres. Uma de 5, uma de 9 e uma de 31. O mundo estava branco. Branco de ruindade. Branco de vazio. Branco de tristeza. Branco de insensibilidade. E viu o preto em seus olhos. Eram seus santos. Gritava pedindo salvação.

Nada além disso nesse mundo poderia estender-me a mão. Um calor estendia-se por todos que estavam ao redor. As lágrimas desciam dos olhos de mãe e filhas. Ao olhar novamente para os braços, uma lágrima desceu dos olhos de sua filha baleada. O último grito de desespero, do mais profundo de sua alma clamava em fé para que a ruindade do mundo não tirasse seu tesouro mais precioso e sua força.

Letícia abriu os olhos, num suspiro profundo dizia o quanto sua mãe era forte, pediu para que fizesse de Carol sua amiga fiel. E que em luta,  nunca esquecesse dela. A última lágrima escorreu e disse “segurei até aqui para despedir-me da senhora, eu te amo. Sempre te amarei. Eles não sabem o que é isso, mãe…” e partiu.

A boca abria e nenhum som saia. Deitou ao chão. Segurando-a com força.

Nunca mais esqueceria daquele dia. Além de fazerem-a lutar pela sobrevivência de suas crias, agora retira dela a esperança de sobreviver. Não entendia como eles nunca sentiam empatia.

Racismo. Tortura. Massacre. População negra. Mulheres negras. Sobrevivência e dor.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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