O impacto do Bolsa Família entre as mulheres

Pesquisa que ouviu 150 beneficiárias entre 2006 e 2011 revela que dinheiro garante autonomia e tem papel fundamental na emancipação feminina no interior do Brasil

Por Leonardo Cazes

“E aí quando você recebe aquele dinheirinho, você bota tudo para dentro de casa, né? Compra roupa, compra um calçado, uma coisa e outra para os meninos, né? E o marido não, quando recebe o dinheiro, vai ali no bar tomar uma. Então, é assim. Tem que pôr no nome das mulheres, se não fosse isso…” A fala de Dona Gerusa, moradora de Maragogi, litoral norte de Alagoas e beneficiária do Bolsa Família, revela uma das dimensões ainda pouco conhecidas do principal programa federal de combate à fome e à miséria e que completa dez anos em 2013: o seu papel na emancipação das mulheres no interior do Brasil.

Esta é uma das conclusões do livro “Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania” (Editora Unesp), de Walquiria Leão Rego, professora de Teoria Social da Unicamp, e Alessandro Pinzani, professor de Ética e Filosofia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Durante cinco anos, entre 2006 e 2011, os dois pesquisadores fizeram cinco viagens para entrevistar mulheres titulares do Cartão da Cidadania, que dá acesso ao benefício, em regiões de Minas Gerais, Alagoas, Piauí e Maranhão. Ao todo, foram 150 entrevistadas. O objetivo da pesquisa era compreender de que forma a nova renda e sua regularidade tinha modificado as suas vidas.

Benefício permitiu separações

As falas reproduzidas no livro constroem um cenário de trabalhadores sem emprego fixo, casas divididas por até três gerações de uma mesma família e casos de violência doméstica. Em comum entre os entrevistados, a matrícula de todas as crianças na escola — exigência do governo federal — e a certeza de que nos grotões do Brasil a vida seria muito mais difícil sem o dinheiro do Bolsa Família. Para Pinzani, ouvir diretamente os beneficiários ao invés de se ater apenas aos dados estatísticos tem, além de uma opção metodológica, uma dimensão ética. Ele afirma que, para muitas mulheres, foi a primeira vez que alguém perguntou a elas sobre como era a sua vida.

— Georg Simmel falava em 1903 do “desaparecimento do pobre”, devido ao fato de ele não ser ouvido. Este silenciamento, comum em tantos países, representa uma forma de humilhação, pois o governo e a sociedade parecem não levar em conta a existência de milhões de cidadãos. Podemos dizer que os pobres são objetos de políticas, mas não são sujeitos da política: em geral, ninguém pede sua opinião na hora de decidir sobre políticas públicas que os afetam — diz o professor.

Neste processo de emancipação feminina, os pesquisadores apontam como decisivo o pagamento em dinheiro do benefício. Em muitos casos, afirmam, esta é a primeira renda regular que muitas recebem. Até então, a vida se resumia a uma luta diária para conseguir comida e subsistir. O dinheiro, observam os autores, ganha uma dimensão libertária na medida em que dá às mulheres a possibilidade de escolha e essa nova autonomia entra em choque com vínculos sociais tradicionais. Houve casos de entrevistadas que só buscaram a separação do marido porque o programa garantia uma renda mínima para si e os filhos.

Segundo Walquiria, a relação entre autonomia e dinheiro é complexa, pois a moeda tem funções materiais, mas também simbólicas. Ela permite que sejam realizadas operações de troca com outros indivíduos e, ao mesmo tempo, possibilita escolhas, mesmo que mínimas. Escolher, argumenta a autora, é “uma ação decisiva para garantir a humanidade das pessoas”.

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— No caso das mulheres pobres que recebem o Bolsa Família, nas regiões em que fizemos a pesquisa, tratava-se da primeira experiência em suas vidas de recebimento de uma renda monetária regular. Isto, por si só, muda a vida de qualquer pessoa. Imagine o significado para estas pessoas que antes do programa de transferência estatal de renda, “caçavam” comida como fazem os animais, agora poder comprá-la com certa dignidade e com isto poder planejar minimamente a própria vida. Tornar-se de alguma forma mais sujeitos de seus destinos. Qualquer democrata sabe que isto configura a elevação do patamar de dignificação das pessoas.

Pinzani rebate as críticas que taxam o programa de assistencialista ou paternalista. Ele afirma que o programa assumiria esse caráter caso distribuísse bens como comida ou roupas. Já a distribuição de uma renda é diferente, pois não somente ajuda os mais pobres “a sobreviver em uma situação de emergência (embora também faça isso), mas também o ajuda a emancipar-se de uma situação de dependência pessoal (de outros membros da família, de coronéis, de instituições de caridade)”. Mesmo sem garantir uma autonomia econômica, o programa seria capaz de tornar o sujeito mais autônomo.

Sobre a possibilidade de alguém deixar de trabalhar para viver do Bolsa Família, o professor é cético e cita números da própria pesquisa: apenas duas das 150 entrevistadas pararam de trabalhar. Uma recebia R$ 150 e a outra R$ 200 para trabalhar em casas de família de classe média, seis dias por semana.

— O valor mínimo da bolsa é de R$ 70 e o máximo vai de R$ 230 a R$ 242 (dependendo da presença de adolescentes). Se os empregadores pagassem o salário mínimo previsto pela lei, que é de R$ 678, ninguém deixaria de trabalhar para passar a receber um terço deste valor — afirma Pinzani.

Fonte: O Globo

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