O Teatro Negro de Cidinha da Silva

Cidinha da Silva é uma escritora que observa a atualidade. Em seus escritos encontramos o samba, o carnaval, a Mangueira, as nossas dores, as nossas alegrias – o nosso cotidiano. Cidinha da Silva é uma mulher plural, e essa característica se reflete na publicação de 17 livros divididos em crônicas, contos, ensaios e literatura infanto-juvenil. Em 2019, a escritora reúne, em uma obra, a sua produção voltada para a dramaturgia: O Teatro Negro de Cidinha da Silva. Em conversa no Instagram do LetrasPretas, ocorrida no dia 24 de setembro, Cidinha falou sobre a coincidência que se deu quando o selo literário Aquilombô apostou nas cores verde e rosa para compor o design do livro, fato que surpreendeu as expectativas da mangueirense.

“Existe um silêncio imposto a nós, no fundo de todas as nossas doenças.”

O livro reúne três peças escritas por Cidinha da Silva para as companhias que tiveram a missão de transformar os escritos em ações. A primeira peça chama-se Sangoma – Saúde às Mulheres Negras e foi escrita em parceria com o grupo Capulanas Cia. de Arte Negra. Encenada pela primeira vez em 2013, a peça tece relatos sobre a saúde das mulheres negras baseando-se em estatísticas que apontam a condição desumana que muitas de nós enfrentamos. A peça conta com cinco atrizes que exploram todos os cômodos de uma casa, fazendo com que a interação com o público seja fundamental. Durante a peça, as personagens relatam acontecimentos violentos de suas vidas que impactam diretamente em sua condição de saúde.

Já a segunda peça, Engravidei Pari Cavalos e Aprendi a Voar Sem Asas, foi encenada em 2014 pela Cia. Os Crespos, em formato de monólogo. Os personagens foram desenvolvidos com base em relatos reais recolhidos em uma pesquisa feita pela companhia. A peça possui relatos sobre temas como violência obstétrica, exploração sexual, estupro, relacionamentos abusivos e abandono.

A partir dos dois primeiros textos, reflito sobre uma crise na saúde pública decorrente do racismo e também do machismo. Esse fato se confirma quando, ao fazermos leituras que tratam das doenças de mulheres negras, de suas solidões e de suas dores, constatamos que as narrativas descritas na obra se assemelham a muitas histórias à nossa volta; ou até mesmo, em certa medida, às nossas próprias histórias. E essa crise na saúde se alimenta e permanece viva à medida que o racismo, unido ao machismo, também se alimenta de seus alvos: as mulheres negras.

“Várias mulheres vivem em mim.”

Outro ponto importante a se destacar é que, em O Teatro Negro de Cidinha da Silva, as questões levantadas sobre as experiências de mulheres negras percorrem as duas primeiras peças de forma sensível – característica presente em toda a obra da escritora. Muitos debates, atualmente, são levantados sobre as questões “da mulher negra”, sem que se considere que nós também existimos em primeira pessoa, temos vivências diferentes umas das outras e, por isso, não merecemos enfrentar mais uma expressão de racismo que nos coloca em padrões, em caixinhas, numa tentativa de nos privar da liberdade de sermos únicas. A sensibilidade e a sensatez de Cidinha se manifestam também ao retratar as mulheres negras e não “a mulher negra”. É reconhecer que a puta, a alcoólatra, a moradora de rua, a princesa do carnaval e a dona do salão de cabeleireiros são mulheres com trajetórias distintas. Portanto, ler Cidinha da silva é se debruçar em uma escrita atenta à nossa singularidade.

“[…] para que os homens e as mulheres não se esqueçam que existem muitas cores e pensamentos, e que o mundo só será alegre e belo se todas as cores e todos os pensamentos tiverem seu lugar.”

Por fim, a terceira peça da obra chama-se Os coloridos, encenada pela primeira vez em 2015 também pela Cia. Os Crespos. Trata-se de um texto voltado para o público infanto-juvenil, onde três araras de diferentes cores debatem a respeito das diferenças – ponto de partida para muitas violências existentes em nossa sociedade. É através de um diálogo rico em argumentos, que derrubam os pensamentos de superioridade de raças, que as araras (azul, amarela e vermelha) entram finalmente em consenso. Em formato fabular, Cidinha provoca em nós uma esperança crucial para o desenvolvimento de nossas crianças. Portanto, mergulhar nesse texto é respirar com a alegria de quem, pelo menos por alguns instantes, acredita em um futuro melhor para todas nós. Nós merecemos a paz desse escrito.

Cidinha da Silva, de maneira exemplar, usufrui muito bem da sua liberdade de criação, parindo escritos que carregam uma fantástica multiplicidade. Já a ouvi dizer que “O princípio da criação é a liberdade”, frase que me acompanha e me norteia quando me dedico a criar.

Ryone Rosa
Canceriana sensível na escrita e no olhar para o mundo. Comprometida com a própria construção e autoconhecimento. Amante do azul, da Literatura e da Poesia.

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