Órfãos do feminicídio vivem um tipo de violência ainda pouco discutida no Brasil

Neste mês de julho, fizemos homenagens devidas a mulheres que, apesar do Brasil, abriram caminhos em suas áreas. Depois de tanta festa, gostaria de honrar um outro legado de mulheres pretas, o da denúncia, jogando luz sobre um tema fundamental para o país —o dos órfãos do feminicídio.

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2020 houve um aumento de 7% na taxa de feminicídios —dessas mulheres, 66% são negras. O Brasil é o quinto país em número de assassinato de mulheres.

Os movimentos feministas e diversas organizações vêm historicamente denunciando e reivindicando políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher. Mas uma questão fundamental é pensar nos órfãos do feminicídio, nas crianças que perdem suas mães e seguem violentadas pelo Estado.

Em uma reportagem de Adriana Pimentel para a agência de notícias cearense Eco Nordeste, encontrei importantes referências sobre o tema. Na entrevista, Pimentel ouviu José Raimundo Carvalho, professor da Universidade Federal do Ceará e coordenador da Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, desenvolvida em parceria com o Instituto Maria da Penha, que ouviu 10 mil mulheres desde 2016.

As conclusões preliminares dão conta de como o assunto é pouco denunciado e estudado. Segundo Carvalho, é “o único projeto, até hoje, que começou a mapear os órfãos do feminícido no Brasil”. “Por incrível que pareça, não existe nenhuma base de dados, nenhuma política pública para os órfãos do feminicídio, e isso é um absurdo porque a orfandade é uma coisa horrível.”

São ainda ínfimos os dados para darmos conta de tamanha tragédia de consequências atuais e para as próximas décadas. Além dos dados levantados na pesquisa, em março de 2020, a pedido da revista Época, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública estimou que o feminicídio deixa mais de 2.000 órfãos no país todos os anos.

Trata-se de uma desgraça por diversos níveis. Em primeiro lugar, pela morte das mulheres pela misoginia. Mulheres que, até serem mortas, muitas vezes são violentadas por anos, abusadas de todas as formas pelos homens que têm sobre elas o sentimento de propriedade, marca da sociedade patriarcal.

Em segundo lugar, a morte da mulher socializa a miséria. Para justificar essa afirmação, precisamos entender que, no país onde foi construída a imagem de o homem ser o provedor da casa, mais de 10 milhões de famílias —dado do IBGE de 2015— são compostas de mulheres com filhos, sendo a maioria delas a responsável financeira.

Há toda uma construção por trás do “ser homem” que naturaliza comportamentos violentos e os absolve de ter sangue de mulheres nas mãos. Construídos para ser o paradigma do patriarcado, eles têm sua alteridade em relação aos outros muito mais distante. Como são absolvidos por exercer “o direito de ser homens”, as consequências de seus atos não são tratadas como grandes problemas, em que pese o fato de isso produzir violências inimagináveis.

O feminicídio, para além de todas essas consequências, transforma aquela criança em uma órfã destroçada pela violência no seu lar. E, depois disso, ela não tem a proteção de nenhuma política de acolhimento, encaminhamento e reparação.

O Brasil precisa se perguntar se é um país ou um abatedouro de mulheres, como já escrevi nesta Folha. E precisa olhar com uma lupa para as mulheres que estão morrendo. Que mulheres são essas? Quais eram seus sonhos? E seus filhos e filhas, como ficarão? Não dá mas para aguentar tamanho crime e abandono de políticas do Estado, não há um projeto de sociedade possível que não priorize essas questões.

Apesar do descaso do governo federal, alguns projetos pontuais têm sido referência no tema, como o projeto Órfãos do Feminicídio, da Defensoria Pública do estado do Amazonas, coordenado pela defensora pública Pollyana Souza Vieira, e a Rede Acolhe, da Defensoria Pública do estado do Ceará.

Mencionadas na reportagem de Pimentel, ambas oferecem assistência aos familiares das vítimas de feminicídio. Iniciativas como essas deveriam ser expandidas com o apoio dos governos e da sociedade civil.

Na entrevista citada, afirma Vieira: “Falta um olhar para essas ‘vítimas ocultas’”. “Sim, elas ainda são invisíveis, a gente ainda tem muito o que avançar nesse sentido.”

“É cruel pensar nisso, mas é verdade, porque, quando acaba o processo na Justiça, a denúncia na delegacia, o assassino vai preso e pronto! Está resolvido o problema para o Estado. Só que ninguém verifica o que está por trás disso, as implicações que essa violência vai causar para os seres humanos que sobreviveram àquilo tudo, e eles ficam totalmente invisíveis.”

Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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