Ela tinha 30 anos quando foi agredida pelo então marido pela primeira vez. Permaneceu calada, por vergonha e por não saber para onde ir, até descobrir, oito anos depois, que o próprio cônjuge havia sido o autor do tiro que recebeu na cabeça enquanto dormia e que a deixou paraplégica. Desde então, a farmacêutica cearense Maria da Penha se engajou em uma luta que resultou na lei que leva seu nome e que protege mulheres da violência doméstica.
Por Gabriela Voskelis Do Uol
Maria da Penha não chegou a sofrer abusos sexuais por parte do marido, mas, assim como muitas mulheres pelo país, se sentiu “impotente” ao ler sobre o estupro coletivo sofrido por uma adolescente de 16 anos no Rio de Janeiro, cujo vídeo foi divulgado em redes sociais na última semana. Em entrevista ao UOL, ela lembra a “vergonha de dizer” que foi agredida, a falta de informação e apoio do Estado e diz que o combate à violência contra a mulher começa na infância: “Educar para respeitar a mulher”.
Leia abaixo alguns trechos da entrevista:
UOL – Qual foi seu primeiro sentimento ao tomar conhecimento do estupro coletivo que aconteceu no Rio?
Maria da Penha – A gente se sente impotente, porque sabe que, atrás de um caso desses que ganha muita visibilidade, existem muitos outros, de que não se tem conhecimento por uma série de questões. Porque aqui [na região Nordeste] a vítima não sabe como denunciar, não tem acesso a informação…
Você acredita que o fato de muitas vezes a vítima acabar sendo responsabilizada pelas agressões sofridas, o que faz parte da chamada cultura do estupro, influencia na ausência de denúncias?
Eu acredito que nos municípios onde as coisas não são tão claras não há políticas públicas, não há nem uma conversa com a população sobre isso, tudo é escondido… Algumas [vítimas] acham que é normal [ser estuprada], outras têm vergonha de denunciar, não sabem como fazer.
Têm vergonha de quê?
Pelo que eu sei, até hoje, como um dia foi comigo, muitas mulheres que não são esclarecidas têm vergonha de dizer que foram agredidas, porque entendem que a sociedade as culpa por serem vítimas. [A sociedade] Coloca como ela sendo a responsável por aquela agressão. Eu não era responsável. Mesmo que eu tivesse feito alguma coisa que a sociedade condena, ainda assim ele não era um juiz, nem tinha o direito de me matar.
Algumas acham que é normal, outras têm vergonha de denunciar, não sabem como fazer…
Você foi vítima de agressões pelo seu ex-marido por muitos anos. Quando você decidiu procurar ajuda pela primeira vez, foi procurar onde?
Eu não fui em canto nenhum, porque não existia nada. Eu não consegui me livrar. Desde o momento em que foi descoberto que meu agressor tinha simulado um assalto e que ele era o autor do tiro, eu fiquei trabalhando por 19 anos e seis meses para que fosse feita justiça. Durante esse período, ele foi julgado por duas vezes e continuou solto. Minha sorte foi que escrevi um livro sobre o que eu tinha passado [“Sobrevivi… posso contar”], e esse livro chegou na OEA (Organização dos Estados Americanos). E o Brasil foi então condenado internacionalmente pela negligência com que estava tratando o assunto.
Você chegou a sofrer algum tipo de abuso sexual nesses anos?
Não, abuso nunca. Ele simplesmente decidiu que queria me matar.
Mesmo com todo o movimento feminista hoje no país, ainda vemos muitos casos de violência contra a mulher. Você consegue ver avanços no Brasil desde quando começou sua luta, passando pela aprovação da Lei Maria da Penha, até os dias de hoje?
Nas viagens que eu faço, a gente tem conhecimento de que são muitas as mulheres que se dizem salvas pela lei. Mas eu ainda me preocupo muito, porque a lei só existe de verdade, só pode sair do papel se forem criadas políticas públicas. A gente tem encontrado políticas públicas nas grandes cidades, que geralmente são as capitais.
São poucos municípios médios e pequenos que têm investido nisso, que têm investido na educação. Porque nós nascemos com uma mente livre. E a educação que nós temos em casa é que nos faz sermos agressivos ou sermos pessoas equilibradas –tirando, é claro, as patologias. Mas, de uma maneira geral, quando a gente é criado num ambiente agressivo, a gente leva essa agressividade pra vida.
Quando a criança do sexo masculino observa seu pai batendo na sua mãe, ela pode se comportar de duas maneiras. Ele pode ter o entendimento de se levantar contra aquilo e pode dizer que nunca vai fazer aquilo quando ele crescer. Mas existem aqueles que são exatamente educados para ser violentos. Que têm observado essa conduta dentro de casa e muitas vezes a mãe, pela condição de não ter como sair daquela situação, minimiza essa agressão.
Se o filho pergunta, ela responde: “Não, é porque seu pai estava com raiva, seu pai estava irritado”.
O governo ainda precisa investir na educação, para tirar a educação natural que essas crianças ainda têm e educar para respeitar a mulher.