Parada gay em SP, a bolha e Cidadania

Cheguei a São Paulo às vésperas do feriado de corpus christi para participar da Parada do Orgulho Gay e rever alguns bons amigos. Na bagagem muitos casacos, esperava um frio inóspito. Para minha surpresa, ao contrário das previsões meteorológicas as noites estavam bastante agradáveis. Uma visita à feirinha do “fuxico”, uns dos eventos que antecederam a parada gay, dava o tom de criatividade, beleza e glamour, que nos aguardavam nos próximos dias. Na noite, no concurso de “braziliandrag” na boite Blue Space, os garotos negros deram o colorido da festa após vencerem treze candidatas louras e morenas; anunciavam que as barreiras estavam caindo, até mesmo nos “guetos”. Uma volta aqui outra ali, até um pulo na Rua 25 de Março, que pujança comercial, quantas pessoas; lembrei da visita à china town, então pensei: como os mercados populares são comuns na sociedade humana, e sempre significaram um espaço de troca e crescimento da experiência humana. Por outro lado, a partir de uma relação interpessoal, os mercados nos colocam em uma tensão entre nossos desejos e os objetos, que muitas vezes, momentaneamente nós fazem felizes e depois descartamos ou esquecemos nas gavetas dos armários. O consumidor experimenta uma bolha que traz sensação de felicidade, e se esgota rapidamente.

Por: Sérgio Martins

Talvez por isso seja mais desagradável lutar pelo exercício da cidadania, porque neste campo, exige-se uma postura de permanente atenção e enfrentamento constante. Aqui, a sensação de felicidade, a bolha, é substituída por um olhar vigilante e um desconforto diante dos constantes assaltos dos demais indivíduos e do próprio Estado contra nossas liberdades.

Então, voltemos a parada do Orgulho Gay em São Paulo, mas antes porque não falar da “Marcha para Jesus”, estranha denominação de marcha, que nos lembra um sentido bélico, um pouco distante da linha teológica dos evangelhos, que possuem uma marca de compaixão e superação das dores humanas. Mas foi um ato interessante sob o ponto de vista político, uma vez, que algumas lideranças evangélicas se posicionam claramente contra a emancipação dos gays, lésbicas, travestis e transexuais, enquanto indivíduos na sociedade civil e política, a partir de um discurso de cunho religioso, exortando uma inércia do Estado no cumprimento de suas próprias razões de existência, ou seja, de garantir através de instrumentos legais o gozo e exercício da cidadania.

Aqui uma particularidade do Estado brasileiro, que em razão de sua forma de nascimento, surgiu antes da sociedade civil e, historicamente, a inventa e reinventa, muitas vezes através da via normativa, digo por legislação ou decisões judiciais. Assim, o conceito de cidadania que consagra a ideia de um indivíduo abstrato, sem identidades particulares, entre nós necessita da afirmação das identidades para garantir a cidadania, pela vida negativa, ou seja, proibição de violação das liberdades, ou pela via positiva, que implica na adoção de políticas de oportunidades.

Este fenômeno sempre me deixou incomodado e indagando, porque a sociedade política brasileira não garante o exercício da cidadania dos indivíduos, apenas pela condição de indivíduo político membro da sociedade civil e política? Mas, ao contrário, seleciona, ora para isentar, ora para perpetrar repressão e a violência. Então, isto significa afirmar que apesar, do tão festejado desenvolvimento econômico, temos uma sociedade civil e um Estado muito atrasados em termos de garantias do exercício da cidadania, apesar da existência de um excelente sistema de coletagens e sistematizações dos resultados eleitorais.

Neste cenário a resposta histórica do Movimento Social, sempre foi a de exigir que a partir das identidades particulares, o Estado conferisse um tratamento igualitário aos indivíduos marginalizados. Por sua vez, o paradigma sempre foi o do indivíduo abstrato, mas em uma atitude política de descontextualizá-lo. Há uma contradição aparente, pois temos um imaginário social de um individuo que não dever ser prejudicado a partir de particularidades, sexo, raça, religião, orientação sexual, mas ao mesmo tempo busca-se o reconhecimento das identidades no interior da ideia de cidadão abstrato.

Daí, temos uma tensão bastante forte, porque à medida que as identidades exigem a proteção estatal esbarram com outras identidades conflitantes. Neste cenário os discursos de defesa e ataque das posições defendidas assumem necessariamente contornos políticos, apesar de terem outras motivações, inclusive as religiosas. Sendo assim, não temos que ficar irados com os discursos proferidos na “Marcha para Jesus”, pois elas apenas expõem os conflitos das premissas do próprio Estado secular.

Parafraseando Marx em seu texto sobre ” a questão judaica”, 1843, “Longe de acabar com estas diferenças de fato, o Estado só existe sobre tais premissas, só se sente como Estado político e só faz valer sua generalidade em contraposição a estes elementos seus”.Isto significa que apesar do Estado abolir a influência da religião, da raça e demais elementos culturais, estes continuam existindo à sua margem,pressionando e atuando na sociedade civil em uma tensão constante.

Enquanto comunidade política, o fundamento do discurso religioso ou quaisquer outros que reivindicam uma posição ou outra do Estado, são menos importantes, porque não podemos nos afastar da finalidade do Estado que é garantir o exercício dos direitos humanos como direitos políticos, inclusive o livre exercício das opiniões religiosas.

Neste contexto, a Parada do Orgulho Gay da qual participamos no dia 26 de junho é uma expressão estética e ética de um segmento que reivindica a liberdade política da livre orientação sexual, digo mais, da liberdade, enquanto direito, de usar e dispor do corpo para além das finalidades reprodutivas, sem abandonar os contornos dos afetos entre as pessoas e as contradições da condição humana.

Em termos políticos, os gays, lésbicas, travestis, transexuais possuem a legitimidade para reivindicar e exigir do Estado a proteção diante das diversas formas de discriminações e prejuízos sofridos devido a orientação sexual. Trata-se de garantir o exercício dos direitos humanos, enquanto direitos políticos, abarcando o universo da sexualidade, até então, restrito ao espaço privado e monopolizado por um discurso fundamentalista, machista e uniforme.

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