Paranoia de preto

Estereótipo racial é a textura do chamado 'tirocínio' policial

“Nesse momento, ele começou a chorar, ficou em estado de choque e, como os seguranças ainda estavam desconfiando, ele mesmo tirou a calça e ficou só de cueca”. Essa declaração foi feita pelo advogado de Luiz Carlos da Silva, homem negro de 56 anos que foi acusado de furto por seguranças do supermercado Assaí. Luiz foi obrigado a se despir para provar que não trazia consigo mercadoria furtada.

Luiz Carlos da Silva, que tirou toda a roupa para provar que não tinha roubado nada em um supermercado da rede Assaí em Limeira (SP) (Foto: Reprodução/TV Folha)

No Twitter, um jovem negro (Lucas Conceição) posta: “Qual é a sua paranoia de preto?”. As respostas detalham o cotidiano de humilhações e interditos imposto à população negra no Brasil. Não abrir bolsa no supermercado; não usar mochilas; não ficar perto de gôndolas; não sair sem documento ou malvestido; não ficar atrás de pessoas brancas; não enfiar as mãos nos bolsos, mas deixá-las sempre à mostra; não entrar em loja só para olhar; não passar perto de policiais; não correr na rua; não usar moletom de capuz; não soar agressivo; guardar e carregar consigo recibo de tudo.

A longa lista de “paranoias” evidencia a suspensão das garantias constitucionais mais básicas para essa população. Para citar apenas duas, não há direito de ir e vir ou presunção de inocência.

Crianças negras são ensinadas a ser “paranoicas” para se proteger de acusações infundadas e abordagens violentas. Há diversos estudos que mostram que interações humilhantes ou violentas de adolescentes negros com policiais causam males a sua saúde mental (incluindo estresse pós-traumático), geram evasão ou mau desempenho escolar e cinismo ou descrença nas instituições e no direito. É profecia autorrealizável, que alimenta o ciclo das desigualdades.

Pessoas negras tornam-se “paranoicas” pois sabem que são vistas como suspeitas o tempo todo e estão vulneráveis a revistas vexatórias, agressões e morte. Mão no bolso, moletom de capuz, chinelo e mochila bastam para configurar “atitude suspeita”. Estereótipo racial é a textura do chamado “tirocínio” policial, tratado com deferência pelas instituições que deveriam controlar o abuso. Pessoas negras sabem que suas interações com policiais e seguranças (que em geral são policiais) têm maior chance de escalar para mais violência. Dentro do sistema de Justiça, suas mortes restarão impunes, nomeadas “legítima defesa policial” ou “resistência seguida de morte”.

Agentes de “segurança” produzem cotidianamente insegurança e risco à população negra. Enquanto isso, promotores e juízes naturalizam racismo como “fundada suspeita”.

Paranoia de preto é a solução individual para transformar coerção, humilhação e medo em estratégia de sobrevivência.

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