Parcialidade das investigações compromete combate à violência policial

Enviado por / FonteConectas Direitos Humanos

Ser ameaçado, agredido e torturado pela polícia, denunciar à Justiça e ver os colegas fardados de seus agressores serem responsáveis pela investigação dos crimes. Este cenário é a realidade da maioria das pessoas presas em flagrante  e que denunciam a violência policial em audiências de custódia.

De acordo com o relatório “Investigações em labirinto: os caminhos da apuração das denúncias de violência policial apresentadas em audiências de custódia”, produzido pela Conectas em parceria com o IDDD (Instituto de Defesa do Direitos de Defesa) a partir de uma análise qualitativa de casos denunciados em São Paulo, via de regra, a resolução e responsabilização destes crimes é nula. Isso enfraquece  um dos principais objetivos das audiências: o combate à tortura e maus-tratos por agentes de segurança do Estado.

Em outubro de 2017, a sanção da lei 13.491 mudou a forma como os casos de violência policial eram julgados após denúncia nas audiências de custódia. Desde então, o juiz envia o relato para apuração da Polícia Militar, que por sua vez remete ao Batalhão onde estão lotados os supostos autores da violência. Ou seja, nos últimos três anos, a averiguação de  tortura e maus-tratos por parte dos policiais militares é feita pelos colegas de farda e comandantes.

A pesquisa analisou o impacto desse instrumento e apontou aperfeiçoamentos nos mecanismos de blindagem da violência estrutural do Estado. Antes da mudança na lei, 52% das denúncias foram arquivadas após a análise inicial. Depois dela, dois casos foram arquivados prematuramente e 30 foram levados à investigação, mas impressionantes 86% deles (ou 26 casos) foram arquivados sem render uma Investigação Preliminar ou um Inquérito Policial Militar.

Um dos casos emblemáticos do documento aponta a denúncia de uma pessoa que foi ameaçada de ter as orelhas cortadas com um canivete durante abordagem policial. Em frente ao juiz, relatou o que sofreu, mas o exame de corpo de delito não constatou lesões físicas já que a violência foi psicológica. Por isso, e por falta de outros elementos comprobatórios, a Investigação Preliminar sugeriu o arquivamento da denúncia.

Como raramente acontece após tal sugestão, o Ministério Público decidiu que um Inquérito Policial Militar deveria esclarecer de vez os fatos. E assim foi feito. Mas o caso foi encaminhado ao batalhão onde eram lotados os policiais militares que fizeram as ameaças relatadas. Em frente aos colegas dos seus supostos agressores, o denunciante recuou: “respondeu que em nenhum momento e nem em audiência de custódia acusou os policiais de agressão, apenas falou sobre a ‘pressão psicológica’ para que levasse os policiais até a sua residência, que se sentiu destratado pelos policiais, mas em nenhum momento foi agredido”.

Para Nina Cappello Marcondes, advogada e uma das pesquisadoras responsáveis pelo relatório da Conectas, essa proximidade entre investigador e investigado é uma falha grave no fluxo das denúncias e faz com que a audiência de custódia seja um mecanismo desperdiçado.

“A pessoa relata uma violência em frente ao juiz, dentro de um fórum, com um defensor público e um promotor de Justiça. Quando ela vai imaginar que aquele relato vai ser remetido para um batalhão de polícia sob critério territorial, ou seja, perto da casa dela? Isso viola todas as garantias possíveis na apuração da violência policial. Conhecendo a polícia no Brasil, a gente sabe que há o risco de ser abordada de novo, porque ela relatou a violência policial e eles têm como saber”, avalia a advogada.

Marcondes destaca, entretanto, que o mau aproveitamento das denúncias feitas na audiência de custódia não é restrito à militarização da investigação. Antes da mudança legislativa, quando a investigação podia ser conduzida pela Polícia Civil, o cenário não era lá muito melhor: “É muito grave a polícia apurar, mas o problema não é só esse. A grande chave dessa pesquisa é repensar a apuração de violência policial em outros moldes: nem na delegacia da Polícia Civil, nem na estrutura da Justiça Militar”.

E essa análise parte não somente dos dados coletados pela pesquisa, mas também de uma decisão internacional. O Brasil já foi condenado pela Corte Interamericana no caso Favela Nova Brasília, e uma das resoluções orienta que “se delegue a investigação a um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente”.

Para Isabel Figueiredo, advogada e conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o principal problema é a desarticulação que há entre os sistemas de Segurança e Judiciário no Brasil. A solução, portanto, passa por uma mudança estrutural: critérios mais objetivos para encaminhamento dos casos, maior recolhimento de provas e um fluxo de trabalho melhor estabelecido.

“Eu já conversei com policiais que falam que não sabem para quem mandam, inclusive já aconteceu de devolverem o caso e o juiz dizer que não tem a ver com isso. O Judiciário, de alguma forma, se organizou para fazer a denúncia, mas não se organizou para ter o retorno e saber o que aconteceu com ela”, avalia Figueiredo, que também é ex-diretora da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça.

Também observando essa tendência da falta de controle do Judiciário sobre os casos de violência que encaminha, o relatório recomenda que haja um controle do número de casos que resultam em denúncias, além da divulgação desses dados. O objetivo é ter índices para criar políticas públicas e, principalmente, prevenir a prática de violência institucional.

É uma mudança estrutural que passa por uma compreensão do Judiciário, que ainda não existe, que a violência policial é estrutural, a partir de um racismo que também é estrutural. Enquanto for visto como casos isolados, não conseguiremos mudar”, afirma Nina Cappello Marcondes.


Violência contra a mulher

Alguns relatos coletados pela pesquisa “Investigações em labirinto” refletem a violência contra a mulher. Em um dos casos, uma gestante afirma que um policial pisou em suas costas. Em outro, uma mulher conta que um policial homem colocou as mãos dentro do seu sutiã e da sua calcinha durante a revista. Há também uma mulher que teve de ficar nua na presença de policiais homens durante a busca.

Esses casos evidenciam uma falha na estrutura do Judiciário em relação ao exame de corpo de delito. Nos casos avaliados na pesquisa, não houve médicas legistas designadas para examinar mulheres. Em outros casos difíceis de detectar em exames clínicos comuns, como agressão psicológica, não há um protocolo definido. 

Entre as recomendações do relatório “Investigações em labirinto” para que haja melhor resolução dos casos de violência policial estão: a disponibilidade de uma equipe multidisciplinar durante o exame de corpo de delito e o direito do periciado escolher raça e gênero dos peritos.

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