Em julho deste ano, a Presidência da República proclamou agosto como o Mês da Primeira Infância para promover ações de conscientização sobre a importância da atenção integral às gestantes, às crianças de até 6 anos de idade e a suas famílias.
Frente a isso, é importante refletirmos sobre as infâncias negras e indígenas no Brasil. O racismo, um dos elementos estruturantes da sociedade brasileira, impacta o desenvolvimento de crianças desde o começo da vida, criando barreiras no acesso a direitos sociais fundamentais e limitando as oportunidades educacionais e econômicas.
Por isso, o enfrentamento ao racismo desde a primeira infância deve ser considerado uma prioridade, pois se trata de uma violência que impede crianças de serem quem são, ou seja, crianças. Essa foi uma das conclusões do Grupo de Trabalho sobre pessoas afrodescendentes (People of African Descent) da ONU. Devido à discriminação racial, estereótipos raciais e discriminação racial sistemática, as crianças negras sequer são vistas como crianças.
Hoje, no Brasil, há uma situação de invisibilidade de crianças de 0 a 6 anos negras, indígenas e de comunidades tradicionais. No campo da educação infantil, faltam dados com recorte de raça, cor e etnia. E dos dados disponíveis sobre mortalidade infantil, por exemplo, elas são as mais impactadas pelas desigualdades que marcam a realidade social brasileira.
O mesmo se reflete quando olhamos para a economia do cuidado, o “cuidar de quem cuida”. O grupo populacional de mulheres negras é o economicamente mais pobre do Brasil, segundo dados da Síntese de Indicadores Sociais (SIS) 2020, do IBGE, o que afeta diretamente as crianças negras e seu acesso à creche e à pré-escola. Ainda, apenas 26% das crianças de 0 a 3 anos entre as famílias mais pobres estão matriculadas na creche, segundo relatório do Núcleo Ciência pela Infância.
Para analisar esse cenário, não podemos nos furtar de encarar a perspectiva histórica brasileira em que mulheres negras, mães e crianças foram escravizadas, e em que mães e crianças indígenas foram submetidas a condições de exploração e genocídio. Nesse período, segundo o pesquisador Daniel Bento, crianças, em geral, não eram vistas como sujeitos de direito e as negras e indígenas eram ainda mais inferiorizadas.
O racismo também impacta o desenvolvimento infantil, e estudos demonstram que o estresse resultante da discriminação recorrente contra mães, mulheres negras ou cuidadores afeta a saúde mental dos adultos e também das crianças. Crianças brancas, por sua vez, passam a ter as suas subjetividades moldadas por uma visão de vantagem e superioridade, ao mesmo tempo em que são privadas da chance de aprender e se relacionar com a potência da diversidade humana.
Um dos caminhos para que possamos ter uma visão mais ampla e que considere alternativas para essa realidade é retomar os marcos legais já existentes. O direito de todas as crianças à não discriminação está no centro da Convenção sobre os Direitos da Criança, da ONU, ratificada pelo Brasil em 1990. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu no artigo 227 que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança todos os seus direitos com absoluta prioridade, além de colocá-los a salvo de toda forma de discriminação.
Assim, a prática do racismo e da discriminação racial é uma violação de direitos humanos e o seu reconhecimento enquanto violência contra crianças há muito tem sido reivindicado por pesquisadores do tema. Ao considerar o racismo desde o começo da vida como uma prática de violência, todos os órgãos do sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes devem atuar de forma intersetorial e em uma perspectiva protetiva, com a criação de fluxos, protocolos e ações equitativas articuladas no atendimento a essas vítimas.
Nesse sentido, as normativas nacional e internacional determinam que, quanto mais vulnerável um grupo de crianças ou adolescentes for, mais prioritária deve ser a garantia dos seus direitos e a implementação de políticas públicas. Devido ao contexto de maior vulnerabilidade, crianças negras, indígenas e de comunidades tradicionais que atravessam a primeira infância encontram-se em uma posição de prioridade dentro da própria regra da prioridade absoluta.
É fundamental que as políticas sobre primeira infância considerem questões de raça, etnia e território tanto para a adequação das políticas existentes às realidades dessas crianças, quanto para a elaboração de políticas específicas. É necessário que, na prática, as proposições presentes nos planos estaduais e municipais pela primeira infância tenham diretrizes explícitas sobre o enfrentamento às desigualdades étnicas e raciais, sejam convertidas em objetivos e metas monitoráveis e que, tanto os movimentos sociais negros, indígenas e de comunidades tradicionais quanto crianças e adolescentes pertencentes a esses grupos estejam presentes nas etapas de decisão dessas políticas.
No âmbito da educação, além da garantia de acesso e permanência nas escolas, é importante que a educação infantil seja qualificada para cumprir sua finalidade de promover o desenvolvimento integral, o que pressupõe a existência de educadores preparados, assim como estrutura e materiais adequados para a educação das relações étnico-raciais, considerando as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que tornam obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira.
Apenas com igualdade racial desde o começo da vida é que a norma da prioridade absoluta, que coloca as crianças em primeiro lugar, será efetivada. Trata-se de compromisso e de um dever do poder público, das organizações da sociedade civil, movimentos sociais, sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes, famílias e toda a sociedade reconhecer a potência da diversidade existente na sociedade brasileira.
Letícia Carvalho Silva – advogada e assessora internacional do Instituto Alana
Leticia Leobet – área de Educação e Pesquisa de Geledés- Instituto da Mulher Negra
Este artigo foi elaborado a partir de uma audiência pública realizada em Junho de 2023, na Comissão de Minorias e Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, por organizações do Grupo Articulador Primeira Infância no Centro, projeto conduzido por Geledés – Instituto da Mulher Negra.