Pau que não bate em Chico também não bate em Francisco – por Rodrigo Salgado

Não tive a oportunidade de ver as matérias na TV sobre o ataque ao coronel da polícia militar de São Paulo, Reynaldo Rossi. Porém, a julgar pela comoção do fato nas reportagens da internet, consigo imaginar o nível de exploração das imagens. Mais do que isso, tenho a nítida impressão de que – como na internet – a exploração midiática do fato se dá descontextualizada do que é a vida sob a “proteção policial” no Brasil.

Acho que é desnecessário pontuar que linchar um ser humano é um ato abjeto. E não só. Pela extensão do dano (ao que consta, o coronel teve a clavícula quebrada), os autores cometeram lesão corporal (art. 129 Código Penal). E não acho – pelo que observei – que houve uma tentativa de homicídio.

Considerando apenas a versão da polícia (algo que já se mostrou cotidianamente temeroso), o coronel Rossi foi covardemente atacado por integrantes da tática Black Bloc quando tentava negociar os rumos da manifestação em curso.

Até esse ponto não tenho muita discordância entre a narração dos fatos e o encaminhamento judicial. O problema é entender a falta de medida entre a proteção à integridade física do coronel e do resto do mundo.

Sim, porque temos que considerar a prática da polícia militar contra a população pobre brasileira. O suposto ato selvagem não está “solto no mundo”. O ódio dos Black Blocs à instituições como a PM e os bancos não brota do nada. Sobre as depredações às agências, acho que é bom pontuar que bancos não são entidades filantrópicas. Detentores dos maioresspreads do mundo, as instituições financeiras do país são possivelmente os maiores rentistas do planeta. Com uma lucratividade de fazer corar os especuladores de Wall Street e com práticas criminosas de concessão de crédito, bancos não são propriamente o sinônimo de felicidade para quase a totalidade dos cidadãos brasileiros. Por isso, se não se justifica o ataque ao patrimônio dos bancos, pelo menos é bom lembrar que bancos também depredam o patrimônio alheio.

Mas voltando à violência, há de se considerar aqui o histórico escabroso de desrespeito ao cidadão brasileiro por parte das polícias tupiniquins.

Eu não sei vocês, mas eu entendo o agente público como a vitrine do Estado. E aqui gosto de lembrar que o Estado não é uma construção divina. Estado é um conjunto de regras que tem como função manter a ordem (em geral via repressão) e promover o bem estar aos cidadãos de determinada nação, estado-membro ou município. Trocando em miúdos, o Estado é também uma invenção humana para a promoção da civilização (ok, ele serve para a manutenção do nosso modo de produção, mas isso fica pra outro post).

Indo ao que interessa, policiais – como agentes armados do Estado – deveriam ser os últimos a promoverem a violência. Mas ao contrário disso, são os que mais naturalizam atos covardes por aqui. Favela naval, Pinheirinho e Carandiru marcam atos de terror do aparato policial paulista. Sempre sob a desculpa de cumprir a lei, é comum que a ação policial resulte em mortes, torturas e excessos. Ontem, 27/10, Douglas Rodrigues foi assassinado por um policial. Com 17 anos, Douglas passava em frente a um bar quando foi abordado e tomou um tiro de um policial. Sem motivo algum.

O “acidente” que encerrou a vida de um jovem de 17 anos é tão rotineiro por aqui que ninguém mais consegue acreditar na eventualidade. As denúncias de torturas e crimes fardados são tantas, que a regra se tornou considerar a morte de pessoas por policiais como execução e não acidente ou legítima defesa.

Por isso, antes de solidarizarem-se (justamente) com o coronel, sejam coerentes. Conforme aponta relatório veiculado pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, entre 2005 e 2009, a PM paulista matou mais pessoas que todas as polícias americanas no mesmo período: 2045 contra 1915. E olha que a polícia americana não é famosa pela sua condescendência.

Mesmo quando age no centro expandido da capital, a polícia não gosta muito de conversa. Todos se lembram daquela fatídica quinta-feira de junho, quando a tropa de choque deliberadamente provocou o caos na cidade, arremessando bombas até dentro de apartamentos.

E nada dessa história choca mais do que a indignação seletiva de Dilma e Geraldo Alckmin. Ambos se prontificaram a se solidarizar com o coronel sem nunca se indignar com os grupos de extermínio liderados por policiais, pelos Amarildos, Douglas ou pelos jornalistas covardemente atacados a cada cobertura de manifestação.

É deprimente o descaso de nossas lideranças políticas quando se trata de denunciar os crimes cometidos pelo Estado. A defesa intransigente e descolada da realidade que se fez no caso do coronel é no fundo uma confissão de culpa de um Estado que teme pela disseminação do linchamento como forma de revide às atrocidades que grande parte dos brasileiros são submetidos pelo aparato de segurança pública. Torço para que isso nunca aconteça, mas se acontecer, lembrem: foram vocês – agentes públicos – que começaram.

Até porque, quem quer ser respeitado, respeita. Seu o pau não pode bater no Chico, que não bata no Francisco.

 

 

Fonte: Rodrigo Salgado

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