Seis líderes afro-religiosos foram assassinados na Região Metropolitana de Belém (RMB) em menos de um ano. A onda de crimes provoca terror, mas também mobilização em defesa das religiões de matriz africana na capital paraense.
Por Abílio Dantas do Outros 400
Quando Carlos da Silva Nazaré, 53 anos, sai de sua casa para participar de uma reunião com outros líderes afro-religiosos no município de Ananindeua, já sabe bem o que esperar dos olhares nas ruas. Sua indumentária tradicional, formada por pano de cabeça e túnica de origem africana, causa viradas repentinas de rostos e comentários jocosos em seu caminho. O desconforto habitual, no entanto, recebeu um elemento agravante nos últimos meses: o medo. Isso porque, entre os dias 5 de outubro de 2015 e 7 de agosto deste ano, seis sacerdotes de religiões de matriz africana foram vítimas de homicídio na Região Metropolitana de Belém (RMB), segundo levantamento de lideranças afro-religiosas. Os fatos causam terror no “povo de terreiro”, como se identificam, e provocam questionamentos aos representantes da segurança pública do Pará.
A mãe de santo Inez Rodrigues abriu seu terreiro para receber outras lideranças e debater formas de combater a violência (Foto: Kleyton Silva)
Em uma tarde de sexta-feira, 27 lideranças e praticantes das religiões de origem africana, entre pais, mães e filhos de santo, reuniram-se na casa Seara de Umbanda Mamãe Oxum, no conjunto Cristo Redentor, Ananindeua, para debater os casos de violência e pensar ações de resistência com o objetivo de superar o momento de insegurança. A mãe de santo Inez Rodrigues, responsável pelo terreiro, foi a anfitriã do encontro que reuniu reflexões sobre homofobia, criminalização da periferia e ódio alimentado contra a cultura afro-religiosa.
PERSEGUIÇÃO
Mãe Inez, com a voz firme, iniciou a reunião. “Faço questão que você coloque aí: nós não cultuamos o demônio. Para mim, toda essa violência começa com essa mentalidade.” Para a mãe de santo, os assassinatos dos pais de santo estão ligados diretamente ao aumento da intolerância religiosa. A primeira vítima foi Roberto Ruan Neves da Silva, em Benevides. Já no bairro da Pratinha II, em Belém, foi assassinado o pai Marco Antônio Albuquerque da Cruz. Em Castanhal, a vítima foi José Flávio de Andrade. No distrito de Icoaraci, também houve um assassinato: Raimundo Nonato Ferreira. O mais recente foi o caso de José Mário Cavalcante da Silva, assassinado em Ananindeua. “Sabemos que cada um dos casos tem sua particularidade, mas chama atenção o fato de todos serem pais de santo e nós sabermos também de casos de ameaça e apedrejamento”, afirmou mãe Inez.
Pai Mário Cavalcante, morto no dia 7 de agosto após receber doze golpes de faca, já havia relatado a pessoas próximas, segundo Mãe Inez, que corria perigo. “Eu dizia pra ele: ‘Saia desse lugar, pai’. Mas ele dizia que não ia sair, que não ia dar moleza para aquelas pessoas. Acabou acontecendo isso.” No dia do enterro de pai Mário, 8 de agosto, outro momento de tensão foi vivido por amigos e familiares da vítima. Pai Carlos da Silva Nazaré, da casa Tambor de Mina Estrela Dalva, relata que quatro indivíduos, distribuídos em duas motos, ameaçaram entrar no cemitério. “Só podemos sair de lá quando pedimos o auxílio de policiais militares. Nós ficamos com medo”, contou.
“Ser homossexual, morar na periferia e ser afro-religioso é estar suscetível a diferentes tipos de discriminação”.
O fato de apenas homens, pais de santo, e não mães de santo, terem sido alvo dos ataques, insere no debate sobre a violência, para os participantes da roda, mais um elemento: a homofobia. Augusto Santos, filho de santo e militante de direitos humanos junto a instituições como a Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH), acredita que é necessário atentar para o que chama de “afunilamento da violência”. Para ele, os pais de santo estavam amplamente expostos e vulneráveis. “Ser homossexual, morar na periferia e ser afro-religioso é estar suscetível a diferentes tipos de discriminação. É claro que a violência está em todo lugar, mas é preciso considerarmos essas questões. Na periferia todos estão mais expostos.”
O pai de santo Carlos da Silva Nazaré relata que a perseguição sofrida por pai Mário Cavalcante teve consequências até mesmo no enterro do afro-religioso (Foto: Kleyton Silva)
A prática de manter as casas de culto disponíveis para a entrada de qualquer pessoa, segundo os afro-religiosos, pode ser também outro elemento que exige mais atenção por parte da segurança pública na hora de cumprir sua função. Caso não haja a proteção necessária para a garantia do direito de liberdade de culto, os pais de santo podem ser obrigados a modificar seus costumes. Esse é o caso do pai Marcelo Maciel Simões, que há 28 anos mantém uma casa aberta, antes em Belém e, agora, em Icoaraci. “Hoje em dia eu não abro as portas do meu terreiro em dia de festas para estranhos e só atendo clientes por indicações de pessoas que confio. Me sinto indignado da gente não poder ter o livre arbítrio de expressão”, protesta o sacerdote.
Acusações são recorrentes na história de mães e pais de santo. Quando passou a atuar em Ananindeua, após morar anos no bairro da Cidade Velha, em Belém, mãe Inez diz que suas crenças religiosas passaram a ser vistas como ameaças ao bem estar da vizinhança. Certo dia, um morador do conjunto Cristo Redentor acionou a polícia para que interrompesse os rituais que estavam sendo realizados na Seara de Umbanda Mamãe Oxum. A alegação? Estariam sacrificando crianças no local.
As lideranças afro-religiosas estão unidas para encontrar soluções aos casos de intolerância vividos em seus terreiros (Foto: Kleyton Silva)
“Ele (o vizinho) ouviu o barulho de um menino que caiu no terreiro ou de crianças que estavam brincando, e falou pra polícia que a gente estava matando crianças. Você já pensou?” Segundo mãe Inez, hoje o denunciante é seu amigo, mas a história, para ela, ainda é válida para exemplificar os preconceitos que podem estar por trás dos casos de assassinato da região metropolitana.
ACIRRAMENTO
Os tempos estão piores para o povo de terreiro. É o que afirma mãe Mameto Nangetu, membro do Comitê Nacional da Diversidade Religiosa e conselheira de cultura de religiões de matriz africana de Belém. Em décadas passadas, segundo ela, vários terreiros eram mantidos sob a proteção de importantes políticos do estado do Pará. “Eles não apareciam nas festas, mas cansei de ir em cerimônias onde eram enviados garçons de hotéis famosos de Belém, como o Grande Hotel, e a comida servida era da melhor qualidade. Hoje em dia, algumas igrejas evangélicas propagam a ideia de que nós (afro-religiosos) somos assassinos, por isso aumentaram os ataques”, acredita a sacerdotisa.
“Em crises, o mal é materializado para que seja combatido. Algumas instituições de cunho neopentecostal propagam essa ideia”.
A mesma concepção, sobre o acirramento dos ataques, é defendida pelo historiador Luiz Augusto Pinheiro Leal, pesquisador da Universidade Federal do Pará (UFPA) e doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Historicamente, em épocas de crise econômica e política, de acordo com ele, são escolhidas categorias sociais para serem tratadas como inimigas, como foi o caso da comunidade judaica na Alemanha de Hitler. O mesmo estaria ocorrendo agora com os grupos afro-religiosos no Brasil.
“Em crises, o mal é materializado para que seja combatido, para que haja algo contra o que combater. Algumas instituições de cunho neopentecostal trabalham com a ideia fixa de bem e mal e propagam essa ideia. Dessa forma, a liberdade de ódio e para perseguir e matar se torna mais aberta, como não era antes”, explica o pesquisador. Sobre a presença de políticos em terreiros, o professor explica que líderes como Magalhães Barata, e outras pessoas de prestígio financeiro e político, são bastante citados como parceiros das religiões no passado. No entanto, também afirma que não existem comprovações para os relatos, até o momento.
A mãe Mameto Nangetu acredita que a polícia deve ser
melhor preparada para tratar com os afro-religiosos
(Foto: Klewerson Lima)
Para mãe Nangetu, uma forma de modificar o quadro de violência seria o desenvolvimento de cursos que capacitassem os policias e demais agentes de segurança para lidar com os cultos de matriz africana. “Quando fazemos denúncia de intolerância religiosa, o delegado e o comissário dizem que é briga de vizinho. Eles não têm o olhar de que essa atitude é racismo institucional deles. Eles precisam conhecer nossas tradições”, afirma. Em resposta ao questionamento de Nangetu, a corregedora geral da Polícia Civil do Pará, Liane Martins, defende que a polícia está sim preparada para lidar com os casos de violência contra terreiros. “Hoje todas as nossas unidades trabalham com assistentes sociais e existe a Delegacia de Crimes Discriminatórios, que é voltada especialmente para esse tipo de crime”, defende.
“Quando fazemos denúncia de intolerância religiosa, o delegado e o comissário dizem que é briga de vizinho.”
Ao ser questionada sobre as providências tomadas em relação aos crimes contra pais de santo na RMB, a Polícia Civil do Pará informou que todos os casos registrados do ano passado para cá tiveram inquéritos instaurados e alguns foram concluídos, com autores e motivações definidos. Esse é o caso, garante a Polícia Civil, do pai Marco Antônio Albuquerque da Cruz, de 50 anos, babalorixá do candomblé, encontrado morto dentro da casa em que morava no bairro da Pratinha II, em Belém, ano passado.
O inquérito, segundo a assessoria de comunicação da PC, foi concluído com indiciamento de uma pessoa por crime de homicídio qualificado. As investigações concluíram que o crime foi passional e envolveu também uma briga patrimonial. “Outro exemplo é o caso do pai Roberto Ruan Neves da Silva, morto dentro de um templo evangélico, em Benevides, também no ano passado. O inquérito desse crime foi concluído com a identificação e indiciamento de um homem envolvido no homicídio identificado como Messias”, informou a assessoria. A investigação sobre o pai José Mário Cavalcante da Silva ainda está em aberto.
A Polícia Civil também afirma que quando há casos de homicídio de líderes ou pessoas ligadas a movimentos religiosos, há a apuração dos crimes, por meio de inquérito policial, na qual as diversas possibilidades quanto à motivação dos atos são apuradas. “Inclusive, as de cunho discriminatório com relação à religião seguida pela vítima.”
Como resposta das autoridades estaduais, na última reunião do Conselho Estadual de Segurança Pública do Estado do Pará (Consep/PA), ocorrida na última quarta-feira, 24, foi determinado, a partir das solicitações de aproximadamente dez casas e entidades afro-religiosas, que será desenvolvida uma proposta de grupo de trabalho para tratar de forma específica sobre afro-religiosidade e racismo. O secretário estadual de segurança pública e presidente do Consep, general Jannot Jansen, comprometeu-se na ocasião em propor ao governador Simão Jatene a realização de uma reunião específica junto aos líderes religiosos.
O encontro realizado na Seara de Umbanda Mamãe Oxum, que abriu nossa reportagem, também obteve encaminhamentos. As lideranças presentes decidiram pela organização de uma caminhada pelas ruas de Ananindeua , a ser realizada no mês de setembro, com a temática “Água de Oxalá, trazendo paz para Ananindeua”. O objetivo? Trazer mais segurança e tranquilidade aos povos de terreiro. E construir cidades onde pessoas como pai Carlos Nazaré possam andar na rua sem serem seguidas por olhares desconfiados.