Policiais matam uma pessoa a cada 34 horas em São Paulo, maior número desde o Massacre do Carandiru, diz jornal

Policiais civis e militares de folga mataram 255 pessoas no Estado de São Paulo em 2014 – uma a cada 34 horas. O dado, somado ao total de casos com policiais em serviço, aponta que 963 pessoas foram mortas por agentes de segurança no ano passado. Do total de homicídios, um em cada cinco foi registrado em decorrência de ação policial.

Estadão Conteúdo

Desde 1992, ano do massacre de 111 presos no Carandiru, a polícia não matava tanto – naquele ano, foram 1.428 mortos. O dado completo – com as mortes de folga praticadas por PMs -, embora seja publicado no Diário Oficial do Estado, é omitido das estatísticas de criminalidade oficiais da Secretaria da Segurança Pública (SSP). Os dados, mantidos no site da pasta, mostram apenas os casos decorrentes de ações de policiais civis em folga: 21 ocorrências.

O total de mortes cometidas por agentes fora do horário de trabalho cresceu 17% na comparação com 2013, que registrou 218 ocorrências – as mortes em serviço aumentaram 107%. Neste fim de semana, um PM matou uma vizinha baleou uma grávida na capital paulista.

Por meio da Lei de Acesso à Informação, o jornal O Estado de S. Paulo obteve dados de 783 ocorrências relacionadas à atividade policial. São os casos registrados originalmente como “morte decorrente de investigação policial”. Parte delas, entretanto, foi convertida para homicídio – praticado pelo agente de folga.

Registros

Entre esses casos está o retratado no Boletim de Ocorrência 4.208/14, do 24º Distrito Policial (Ponte Rasa), na zona leste. O fato aconteceu na Estrada Itaquera-Guaianases, em 28 de abril do ano passado. Um policial disse que ia ser roubado em um semáforo e reagiu, matando o suposto assaltante.

O próprio registro, entretanto, mostra que o suspeito estava desarmado e os policias plantaram uma arma na cena do crime para justificar o homicídio. “Uma pessoa passou uma arma que estava em sua cintura aos outros dois, os quais passaram a aproximar-se do corpo do indivíduo desconhecido (o assaltante). Na sequência o soldado, o qual havia recebido a arma ao chegar próximo do corpo se abaixou e a sujou de sangue”, diz o boletim.

Os policiais civis questionaram qual seria o motivo desse gesto. O PM autor dos disparos teria respondido “que era para que a ocorrência ficasse mais redonda, ou seja, sem rebarbas que poderiam causar-lhe problemas futuros”, segundo o BO.

Parte dos registros obtidos pela reportagem relata casos de policias presentes em estabelecimentos comerciais que estavam sendo assaltados, como lan houses, padarias e postos de gasolina. Mas há também ações de agentes de folga diante de assaltos a seus familiares.

Um desses casos aconteceu, segundo o registro, em 6 de maio, na Rua Padre Virgílio Campello, em Itaim Paulista, zona leste. A mulher de um policial havia descido do carro do casal para abrir o portão de seu condomínio quando três homens, que estariam armados, abordaram-na.

O PM “desembarcou do veículo, se identificou como policial e lhes deu voz de prisão, ocasião em que resistiram à prisão e efetuaram disparos em sua direção, e que, por isso, passou a repeli-los, atingindo dois deles”, diz o boletim. Um dos suspeitos morreu. O terceiro fugiu.

Controle

Para a socióloga Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, “não conseguimos romper com práticas institucionalizadas”. “Quando o policial chega na rua, o que ele escuta é ‘esquece tudo que você ouviu na academia, aqui é a vida real’. Um segmento da polícia ainda entende o enfrentamento como uma forma de controle do crime.” Essa postura explicaria em parte o aumento do número de morte em decorrência da ação policial.

Segundo ela, esse uso da força letal é uma ideia equivocada. “O senso comum acredita que essa é a forma de controlar. Mas os indicadores de criminalidade mostram que o enfrentamento não reduz o crime. No ano passado, por exemplo, a letalidade aumentou muito: houve uma pequena redução em homicídios, mas nos demais indicadores o aumento foi expressivo”, diz. De fato, o total de roubos registrados pela polícia cresceu 20,6% no Estado em 2014 em comparação com 2013.

Dez bairros concentram 1/3 das mortes na capital

Um terço dos 353 casos de morte em decorrência de ações policiais em serviço na capital paulista em 2014 foi concentrado na região atendida por dez dos 93 distritos policiais da cidade – todos na periferia. Isso é o que revela o levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo com base em Boletins de Ocorrência. Em compensação, 21 delegacias da cidade não registraram nenhuma ou apenas uma morte praticada por policiais em serviço.

A disposição territorial dos dados revela o mapa da letalidade policial. No centro da capital, apenas uma delegacia, no Bom Retiro, registrou mais de uma morte praticada por policial em 2014.

Uma das mortes, registrada em 12 de novembro, foi de um homem descrito no Boletim de Ocorrência como de cor parda, medindo cerca de 1,75 metro de altura, magro, cabelos pretos e curtos e aparentando ter 30 anos de idade. Os dados descritos no registro apontam ainda que o homem era suspeito de ter assaltado um posto de gasolina da Rua Anhaia, no mesmo bairro. O homem não teve tempo de atirar na polícia depois de sacar a arma, mesmo com um dos policias descrevendo que sua submetralhadora falhou e antes de ser obrigado a sacar o revólver e atirar no suspeito.

A outra morte no Bom Retiro foi no dia 29 de dezembro, na Avenida do Estado, às 5 horas. O suspeito morto teria tentado assaltar um ônibus.

Situação diferente pôde ser observada na zona sul. A delegacia do Socorro foi a única em que não houve o registro de mortes praticadas por policiais. Nas zonas leste e norte não há delegacia em que esse tipo de caso não tenha sido registrado.

Diagnóstico

Especialistas em segurança pública apontam a necessidade de melhoria no diagnóstico da situação de cada localidade para reduzir os confrontos policiais. No caso do controle da letalidade é preciso considerar o onde, o quando e o porquê. Os porquês têm de ser estudados caso a caso, já que, muitas vezes, uma morte está relacionada a uma troca de tiros legítima, diz o cientista político Guaracy Mingardi.

O coronel reformado da PM e consultor de segurança José Vicente da Silva Filhodestaca ainda que os policiais envolvidos nessas situações deveriam ter um tratamento diferenciado dentro da corporação.

“A letalidade não pode ser considerada um fato normal, ainda que se constate maior reincidência da ação criminosa. Todo policial envolvido em situação de alto risco e de confronto deveria passar por estágio de avaliação psicológica. Uma situação de morte produz efeitos pós-traumáticos, que podem afetar o comportamento do policial na rua com mais ou menos intensidade.”

Respostas

A SSP não explicou por que os dados sobre a morte em decorrência da ação policial estão publicados de forma incompleta no site. “São consideradas mortes em decorrência de intervenção policial aquelas em que um membro da PM ou da Polícia Civil reage legitimamente a uma agressão levando um suspeito a óbito”, diz a SSP, em nota. “Não entram nas estatísticas de morte em decorrência de intervenção policial os casos em que policiais cometem homicídios comuns. Também não são considerados os casos em que policiais reagem a assaltos ou outros crimes sem antes se identificar.”

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