Portugal se ressente da invasão de brasileiros mas não nos devolve o ouro

Festival organizado por luso-africanos é esperança de mundo melhor em país europeu

Pela segunda vez neste ano estou em Lisboa, e desta vez pude rever com mais tempo os meus irmãos portugueses –luso-africanos de origem cabo-verdiana, guineense, angolana e os nativos, os da terra.

Como das outras vezes que estive em Portugal, as sensações de “pertença” e descontentamento se misturam de maneira fantástica apenas nos primeiros contatos do dia a dia e nos relatos que ouvi de pessoas que convivem por aqui. No geral, para elas, continuam os processos duros de subsistência, trabalhando apenas para existir, e de violento convívio sob a ótica de uma realidade que subverte qualquer plano ficcional.

Em julho passado, vim participar do Lisboa Criola, um festival que ocorre, todos os anos, no jardim da Fundação Calouste Gulbenkian, evento multicultural, já referência de sucesso, organizado sob a curadoria do conhecido músico e produtor Dino D’Santiago, que teve Djamila Ribeiro, colunista desta Folha, de forma muito merecida, como uma das estrelas.

Agora foi a vez do Festa Criola, também um festival de cultura, gastronomia e empreendedorismo –visitado por Adriana Barbosa, da Feira Preta— e que, ao contrário do primeiro, é realizado em vários pontos da cidade, com foco nas comunidades e nos bairros mais retirados da capital do país, que chamaríamos de “periféricos”.

É preciso dizer o quanto é tocante termos diante de nós uma realidade muito diversa daquela que estamos acostumados a ver quando acessamos o território deste país europeu.

Bloco Bué Tolo, um dos pioneiros do Carnaval Lisboeta, arrasta multidão à beira do Tejo, em setembro – 15.set.23/Divulgação

Esta ideia de lugar e pertencimento está tatuada em templos e paredes dos pontos mais inescapáveis da cidade e do país. E não é algo escamoteado ou não perceptível —como muitas coisas no Brasil. Pelo contrário. Aqui é frontal e direto. O europeu português não faz questão de esconder em fraseologias que é “de raça”, e que os demais são “de fora”, os de origem africana e brasileira, e que não são bem-vindos.

Sou filho da terra de Maria Firmina dos Reis e Machado de Assis e me sinto, muitas vezes, incomodado pelo belicismo de ideias de determinados seres humanos, como os daqui. Mesmo assim, não como migrante, mas como convidado de um grande festival cultural e acolhido por toda uma calorosa comunidade, preciso perfurar esta bolha, independente do que pensam os “de raça” ou desejam sobre mim.

A xenofobia –aversão repugnante, contra os que não são do lugar– está muito grande por aqui, sobretudo nos grandes centros urbanos. Eu não a vivi diretamente, nessa minha nova passagem a Portugal, mas a senti, indiretamente. A xenofobia cresceu espantosos 505% nos últimos anos contra uma população de cerca de 400 mil imigrantes brasileiros, dado populacional aferido pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras do país. As violências racistas e xenofóbicas vão de xingamentos públicos e verbais de “lixos” a “putas” –também grafados em muros e paredes. Sem meio-termo.

Por todos os ramos dos serviços públicos e privados, de baixa qualificação –faxina, construção civil, motorista e trabalho ambulante– temos a presença de algum brasileiro ou imigrante africano. Entre a mão de obra braçal, é a que menos ganha monetariamente e a que tem menos amparo da legislação –além de sofrerem toda a sorte de agressão policial e temer a expulsão, numa situação pior a que chegou.

O país como um todo conta com 10,4 milhões de habitantes. A tendência é que esse número apenas cresça em termos de migração, já que a sociedade portuguesa envelhece a olhos vistos. A brasileira também está pelo menos caminho, mas nós somos 203 milhões de almas.

O carioca Jhon Batalha, que foi para Portugal em 2019 e diz ter sido chamado de burro e macaco em seu trabalho – Fernando Donasci/Folhapress

Na segunda (6), no Porto, uma brasileira foi ofendida por uma mulher portuguesa que a chamou de “sua porca” e a acusou de “invadir” Portugal, como os seus patrícios. Gravada em vídeo, com a “autorização” da enraivecida mulher, os xingamentos viralizaram e chegaram rapidamente até nós.

No dia seguinte, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, fez um pronunciamento indignado e comentou, com uma pérola irônica, a acusação de invasão, dizendo “temos direito a reciprocidade”, com o pedido devolvam o “nosso ouro”.

Também o deputado federal Túlio Gadelha (Rede-PE), membro da Comissão sobre Migrações Internacionais e Refugiados da Câmara, pediu “apuração” junto à embaixada do governo português e pediu celeridade na “investigação” e maior “controle de manifestações xenofóbicas”.

É estranho que uma mulher portuguesa, de meia-idade, reivindique ser “portuguesa de raça”, logo um povo que durante séculos ofendeu nações, como as do continente africano, onde escravizou milhares de corpos negros e extirpou vultosas riquezas.

Outra estranheza é falar em invasão. Os monumentos que rasgam as artérias da cidade portuguesa, e que resistiram mesmo aos solavancos do grande terremoto de 1755, são os melhores registros sobre quem invadiu primeiro quem –sem falar na matança de indígenas e na degradação de florestas.

Apesar dos pesares, estou muito feliz por estar em um país com tantas contradições –cultural e historicamente falando. E como tudo isso explica bem do comportamento de uma certa sociedade brasileira, ainda tão fadada ao conservadorismo e aos privilégios centenariamente gerados além-mar.

Em Portugal, xenofobia e racismo ainda não são vistos como crimes, de uma forma direta e consequente, como no Brasil. Não há movimento negro por aqui, sequer uma organização de defesa dos brasileiros que para cá migraram, além dos protocolos legais, todos controlados governo.

Por isso a importância dos festivais Lisboa Criola e Festa Criola, celeiros que reúnem, sem xenofobia e sem racismo, centenas de etnias e nações, que buscam congraçamento, paz, esperança e fé no futuro.

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