Possíveis fases de uma vida lésbica: do medo de magoar os outros ao medo de magoar-se

Muitos de nós, LGBTQIA+, precisaram passar por uma espécie de ritual até encontrar-se com o “eu” atual. Aquele que respira fundo e segue orgulhoso de sua trajetória, vitórias e aprendizados, mesmo sendo apontado, diminuído e incompreendido por grande parte da população. Aquela que sorri das pequenas conquistas, sente e almeja liberdade para outros iguais a nós. 

Primeiro, você nasce e já enche seus pais de expectativas relacionadas a sua genitália. Se for uma vagina, sai do hospital provavelmente vestida com uma roupa cor de rosa, mas caso seja um pênis, sua roupa será de cor azul. E isso, é só o começo. Vão esperar que você faça exatamente o que eles fizeram, e o que todos os outros como você fizeram antes. Não ouse pensar ou fazer algo diferente.

Crescemos rodeados de infinitas referências heteronormativas, algumas violentas, mesmo assim, nos é apresentado que esse modelo é o correto a ser seguido. Alguns subversivos de berço não se moldarão a tal situação e serão impetuosamente massacrados. Outros tentarão performar os papeis de gênero desenhados para todos nós desde antes do nascimento, falharemos, nos sentiremos imperfeitos, estranhos, provocaremos lágrimas e choramos.

Nos questionamos, passamos noites em claro pensando, julgando-nos. Entenderemos que não somos merecedores de afetos. Aceitaremos piadas, agressões daqueles que estão ligados a nós pelo sangue. Sofreremos calados, morreremos um pouquinho a cada amanhecer, enfraquecidos. É isso que aprendemos ao ouvir, ver, sentir nas ruas, nas igrejas, inclusive e dolorosamente na nossa família. Nós não somos dignos de amor, é o que grita a sociedade. 

 Segundo, cansados, confusos, olhos inchados, levantamos, vemos as lutas dos que vieram antes de nós. Estudamos, pesquisamos, saímos da bolha doente em que nos metemos. Avistamos ativismo, flores, vislumbramos possibilidades. Buscamos nos firmar. Andamos de mão dadas com outros como nós. Ainda com medo, porém, com doses de fé, agarramo-nos aos pouquíssimos apoiadores do amor, do respeito, da empatia, do direito. E seguimos.

Terceiro, dialogamos, fortalecemos os discursos, criamos armaduras de proteção, compartilhamos histórias, seguramos as mãos dos cansados, incentivamos a luta por meio de ações. Vamos para o embate. Não nos curvamos ao ódio, mostramos nosso valor. Aparecemos em áreas antes restritas, incomodamos. Provocamos a mudança. Criamos novas perspectivas para aqueles que ainda estão na primeira fase. Levantamos a bandeira da diversidade.

Entender que nossas vozes são importantes é fundamental. Uma vez que, de tempos em tempo precisamos afirmar e reafirmar nossa humanidade. Se calarmos, nos escondermos, apagaremos o passado de dor e resistência de muitos, e incentivaremos a exclusão e sofrimento dos que ainda não vieram. Não podemos descansar. Nem viajar para relaxar em qualquer parte do mundo. 

Há países que nossa existência é crime, outros que a morte é a pena final. No Brasil, morremos diariamente. Tais ações são motivadas e executadas por gente doente, cega e alienada. Gente que se acha melhor que nós. A maioria diz seguir a bíblia, apoiam o uso de armas de fogo, nos deixam sangrar o líquido vermelho sagrado da vida. Nos crucificam, impedem nossa passagem, ceifam sonhos, é preciso gritar, respirar enquanto podemos, porque eles não nos deixam viver. 

 Quarta fase mas não a última, é enfatizar que nossas vidas LGBTQIA+ importam! Pena que muitos não estão mais aqui para erguer os punhos conosco. Por isso, o “eu” que vezes é feliz, vezes triste, é consciente e determinado e não desiste mais. Há recaídas, é verdade, mas, permanece na luta, por mim, que declarei ao mundo quem sou (sobre amar outra mulher) e por você que ainda não pode! Por uma sociedade mais justa e que nos respeite. É só isso que queremos. Nada mais. 

Por Alandienis Souza Santos

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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