PRECONCEITO: O que é? Possuímos? Como evitá-lo?

Entre o nascer e o morrer nós somos, e esse ser é perpassado por um torna-se sem cessar. Por isso ninguém poderia se banhar num mesmo rio duas vezes: ao entrarmos, sairmos e retornarmos, as águas já teriam passado e seriam outras e nós mesmos já teríamos, ainda que minimamente, nos transformado também e seriamos outros. Há, portanto, um ser e um estar sendo nesse exato momento e que nos constituem. Mas o que constitui esse ser e esse estar sendo?

Por Lucas Jairo C. Bispo para o Portal Geledés 

Foto: Reprodução/ YouTube

É possível que entre aquilo que nos constitui e o que está nos constituindo existam preconceitos. Em caso positivo, uma das características desses preconceitos na relação conosco é não se apresentarem como preconceitos para nossa consciência. Isto porque, como veremos, na medida em que a consciência percebe um preconceito como um preconceito este se desfaz enquanto um preconceito. Assim também ocorre de uma ilusão a qual estamos sujeitos e pensando-lhe ser uma realidade deixar de ser uma ilusão ao a descobrirmos como uma ilusão e não mais a entendermos como uma realidade, ou quando possuímos uma crença que aceitamos como verdadeira e, descobrindo-lhe falsa, a crença verdadeira se desfaz enquanto crença verdadeira e já não mais a temos como uma crença verdadeira.

Como descobrirmos, então, se possuímos preconceitos se a existência deles pressupõe que estejam ocultos aos olhos da nossa consciência?

A chave para chegarmos na resposta para essa primeira questão está numa ainda mais fundamental: o que é um preconceito?

O termo “preconceito” é composto pelo prefixo “pré” e pelo substantivo “conceito”. O prefixo “pré” indica, nesse caso, que o “conceito” foi fixado/determinado anteriormente a alguma outra coisa.

O que seria, por sua vez, esse conceito? Uma forma de responder essa questão é pensando o conceito como todo processo que torne possível a descrição, a classificação e a previsão dos objetos cognoscíveis.[1] Isto é, como concepção, caracterização e/ou definição.[2]

Um preconceito seria então um processo e/ou concepção, caracterização e/ou definição, que torna possível a classificação e a previsão dos objetos cognoscíveis e alvos do preconceito, ou seja, seria um conceito, mas que foi (pre)fixado/(pre)determinado anteriormente a alguma coisa.

Dessa maneira, se o preconceito é um conceito fixado/determinado antes de certa coisa, que coisa seria essa?

Intuitivamente, e observando os modos de uso e os contextos nos quais o termo “preconceito” é usado, essa “coisa” pode ser entendida como o conhecimento. Nessa perspectiva, o preconceito é um conceito fixado/determinado antes/sem conhecimento.

Resta a última questão e que o (a) leitor (a) atento (a) já se fez: e o conhecimento, que seria?

Nenhum dos significados propostos para os termos analisados foram propostos como significados essenciais, verdadeiros e/ou corretos para os mesmos, mas apenas como alternativas (todavia não alternativas arbitrarias, mas que, ao meu ver, normalmente estão em jogo por trás uso cotidiano desses termos) e não será diferente quanto ao conceito de “conhecimento”.

Para essa última questão, uma resposta que foi amplamente aceita e discutida historicamente encontra sua raiz nas obras de Platão, mais especificamente no Teeteto, na qual este diz:

[…] uma vez ouvi dizer que crença verdadeira acompanhada de uma explicação racional é conhecimento, ao passo que a crença verdadeira não acompanhada de uma explicação racional é distinta do conhecimento. (PLATÃO, 1987, 201 c-d)

Esse entendimento é comumente reconhecido como definição tripartida, pois compreende o conhecimento como constituído por três partes, nomeadamente, do ponto de visa tradicional: Crença Verdadeira Justificada. Assim, somente a satisfação de todas as partes permitiria a aplicação do conceito de conhecimento, estando descartadas, como nos lembra Luiz Henrique de Araújo Dutra

[…] as opiniões que temos e que são falsas, obviamente, assim como aquelas que, mesmo sendo verdadeiras, não recebem qualquer justificação. Além disso, as proposições verdadeiras, que, no entanto, expressão opiniões ou crenças que determinado sujeito não possui, essas também não podem ser candidatas a ser conhecimento. (DUTRA, 2010, p.19)

Nessa perspectiva, podemos dizer que essa é a estrutura dessa definição tradicional:

(DT) S sabe que p se e somente se
(i) S crê que p,
(ii) p é verdadeira,
(iii) S está justificado em crer que p.

De acordo com Alexandre Meyer Luz as noções que estão presentes nessa estrutura são as seguintes:

1. A expressão ‘S sabe que p’ é tomada em seu sentido proposicional.
2. ‘S’ é um sujeito epistêmico qualquer (ou seja, um sujeito capaz de ter estados mentais aos quais atribuímos o status de “epistêmicos”, tais como crer, descrer, suspender o juízo, conhecer, etc);
3. ‘p’ é uma proposição qualquer;
4. ‘S crê que p’ nos indica que p está na mente de S e que S está disposto a aceitar que p é verdadeira (mesmo sem possuir boas razões para tal)
5. ‘p é verdadeira’ afirma simplesmente que p descreve algo que ocorre de algum modo independente de S;
6. ‘S está justificado em crer que p’ nos informa que S tem – falando de modo provisório – ‘boas razões’ para crer em p, ou que S tem ‘o direito de crer em p’.
(LUZ, 2013, p. 19)

Assim, toda vez que concebemos um conceito que não se constitui como um conhecimento e/ou não se fundamenta em conhecimento, tratar-se-á de um preconceito. Talvez possamos dizer, inclusive, nos valendo da definição tripartida do conhecimento, que um preconceito é uma crença tomada como verdadeira ou falsa injustificadamente.

Essa maneira de entender gera ao menos duas consequências controversas para o senso comum: um preconceito pode ser verdadeiro e/ou ter um conteúdo positivo.

Um preconceito pode ser verdadeiro porque sua constituição enquanto preconceito não depende de sua verdade ou falsidade, mas do conceito se constituir ou não como e/ou estar ou não fundamentado em conhecimento, e o conhecimento, por sua vez, no sentido trabalhado nesse texto, também não se define por ser uma crença verdadeira ou falsa, mas uma crença verdadeira justificada, de modo que podemos conceber um conceito com um conteúdo que aceitamos como verdadeiro (crença) e que é verdadeiro (crença verdadeira) mas que por falta de evidência/justificativa legitimas não se constitui como conhecimento e, portanto, na ausência desse conhecimento, existe como um preconceito.

Por outro lado, o conteúdo de um preconceito, independente de ser verdadeiro ou falso, pode ser positivo ou negativo em sentidos diversos de bom ou ruim ou útil.

Exemplificarei:

1. Se vemos dois homens de mãos dadas na rua, seria um preconceito concluirmos que são necessariamente homossexuais ou bissexuais, por exemplo. Preconceito porque formulamos um conceito acerca da orientação sexual dessas pessoas sem conhecimento, isto porque o fato de estarem de mãos dadas não evidência nem justifica a crença de que são homossexuais ou bissexuais, dado que as orientações sexuais se definem não por quem damos as mãos, mas pelo sexo pelo qual conseguimos sentir atração sexual. Ou seja, formulamos um conceito e adquirimos uma crença acerca da orientação sexual desses dois homens, mas sem termos justificativa legitima que sustente a verdade dessa crença. No entanto, é plenamente possível que esses homens sejam de fato homossexuais ou bissexuais e a nossa crença seja de fato verdadeira, ainda que continue sendo um preconceito já que não se funda em conhecimento.

2. Se julgamos alguém como uma pessoa confiável devido a sua aparência, o conteúdo desse julgamento é positivo para essa pessoa, e podemos até beneficiá-la com base nessa crença, no entanto, se este nosso conceito e crença acerca dessa pessoa não se constitui como verdade e não possui evidência/justificativa legítimas, trata-se de um preconceito.

Há, no entanto, uma conseqüência menos nítida, ainda que tão, ou mais, controversa: talvez não seja possível obtermos quaisquer conhecimentos e estejamos fadados a ou a suspensão do juízo ou a cometermos preconceitos. Afinal, como podemos dizer saber que uma crença é verdadeira ou falsa? Ou seja, quando teremos garantias de que uma ideia corresponde ou não aos fatos?

Uma avaliação rigorosa, ampla e profunda das questões anteriores pode nos mostrar que o que pode haver de mais obvio e racional para nós é na verdade inevidente e objeto de crença, que aquilo que tomamos por certo e pensamos ter conhecimento, é na verdade uma crença sem justificativa legitima, um preconceito. Com essa avaliação, talvez cheguemos a conclusão de David Hume (2003, p. 60), acerca do resultado de toda filosofia: “[…] a constatação da cegueira e debilidades humanas, com a qual deparamos por toda parte apesar de nossos esforços para evitá-la ou dela nos esquivarmos”. Isto porque, em termos humeanos, a mais perfeita filosofia natural apenas deteria temporariamente nossa ignorância e a filosofia moral ou metafísica encontraria sua serventia talvez apenas na revelação de porções mais vastas dessa mesma ignorância. Ou, diferentemente de Hume, concluamos que nenhum conhecimento é possível.

Para ilustrar minimamente essa complexidade, pensemos no seguinte: o fato de vermos, cotidianamente, o sol nascer, se mover no céu, e se por, e o fato de nos sentirmos parados quando, na nossa perspectiva, estamos parados, garante que a ideia de que o sol se move e de que estamos parados são verdadeiras?

A maioria das pessoas acredita que a Terra está girando em torno de si e do sol, mas quantas se perguntaram como sabem que a terra gira em torno de si e do sol e não o contrário, se o sol parece se mover surgindo no horizonte ao nascer e desaparecer ao se pôr todos os dias? Se a terra está girando em torno de si e do sol, porque não a sentimos mover-se nem a nós mesmos? Ao jogarmos verticalmente algo para cima, porque cai no mesmo lugar e não mais atrás, já que a terra se moveria no intervalo entre o lançamento e a queda, etc?

O que está em jogo aqui é uma questão socrática por excelência: como sabemos o que pensamos saber? Já houve época em que tamanho era o mistério que repousava sobre o sol que foi considerado um Deus. Desconfio que em muitos de nós, e esse é o meu caso, apesar de não o percebermos misterioso nem divino, talvez saibamos tão pouco sobre ele quanto sabiam estes antigos.

Poderíamos responder que sabemos disto porque a ciência nos diz, mas sabemos como a ciência sabe? Ou apenas aceitamos essa ideia devido a autoridade cultural desta? Não estou equiparando a ciência a religião, mas nossa relação com a ciência pode ser de crença. Por exemplo: ao nos consultarmos com um médico ou médica e aceitarmos o diagnóstico e nos submetermos ao tratamento sugerido, estamos confiando nossa vida e saúde e este ou esta, mas conhecemos os resultados atuais da ciência médica? Sabemos o que é ciência? Tivemos condições de verificar se o diagnóstico era verdadeiro e o tratamento adequado? Sequer sabíamos se quem nos atendeu era realmente médico ou médica?

O ponto é que ver tão nitidamente o sol se mover ou nos sentirmos tão certamente parados não é justificativa legitima para conferirmos o atributo de verdade as idéias de que o sol se move (pois estaria parado em relação a nós nesse sentido) e estamos realmente parados (dado que estamos nos movimentando junto com a terra a milhares de quilômetros). Afirmar a verdade dessas idéias com base nisso seria preconceito, e é justamente como preconceitos que essas afirmações normalmente existem em cada sujeito crente nelas.

Esse tipo de preconceito, no entanto, é evitável. Mas isso porque a ilustração foi superficial. Se considerarmos os limites das nossas faculdades de conhecimento e da nossa linguagem, podemos chegar a conclusão de que em quaisquer circunstancias nossas possibilidades de conhecimento serão escassas ou inexistentes e que qualquer juízo de verdade/falsidade pode ser ou será um preconceito (mas não irei me aprofundar nisso).

Esclarecido – ao menos minimamente – o que é um preconceito, por um lado satisfazemos – tanto quanto conseguimos esclarecer a questão – o que o Sócrates de Platão disse ser o único modo de começarmos a deliberar bem sobre qualquer coisa: conhecermos o objeto da deliberação.

Partamos, então, para a segunda parte do nosso título. Dado o entendimento anterior de preconceito, possuímos preconceitos?

Parece-me que é extremamente improvável que já tenha existido, exista ou possa vir a existir um indivíduo sem quaisquer preconceitos, e diversas razões poderiam ser levantadas para sustentar essa concepção. No entanto, não quero definir em principio se possuímos ou não preconceitos. Gostaria de incentivar que cada um e cada uma, se quiser, se investigue e conclua se os possui ou não através das seguintes questões, para as quais uma ausência de resposta ou resposta negativa afirma nossos preconceitos: “Como sei o que penso saber? Realmente sei? Aquilo que eu penso ser verdadeiro e justificado, de fato é verdadeiro e justificado? Ou seja, os meus conceitos e crenças se constituem como conhecimento e/ou se fundam em conhecimento?”.

Constatado a existência do preconceito, este se desfaz, ao menos no campo das idéias (pois podem permanecer impregnados na nossa carne
e no nosso inconsciente – duas esferas não tratadas aqui), e se transforma em ignorância, pois descoberto a ausência de conhecimento, o que pensávamos saber verdadeira e justificadamente, aparece como uma crença infundada e talvez falsa.

Porém, como evitarmos preconceitos? Para tentarmos alcançar, ou alcançarmos, esse fim, é preciso, por um lado, fazer de si um juiz que, através dos questionamentos anteriores para a constatação da existência de preconceitos, julgará os conceitos, as crenças, as idéias, etc., que possuímos, afim de constatar se são preconceitos ou não e os desfazer se sim, e por outro, policiar-se para vigiar a Consciência e a Vontade e impedi-las de formularem ou aceitarem concepções como verdadeiras ou falsas para além dos limites do nosso Entendimento. Ou seja, para impedir que criemos ou aceitemos conceitos sem conhecimento.

Por fim, deixo as questões desse texto para que cada um possa pensar junto, com, a partir e inclusive contra o que foi exposto aqui: o que é um preconceito? Possuímos algum? Como evitá-los?

Por. Lucas Jairo C. Bispo.
Publicado originalmente em: https://cogitologoescrevo.blogspot.com/2018/06/preconceito-o-que-e-possuimos-como.html


[1] Disponível em: ‹http://charlezine.com.br/wp-content/uploads/2011/11/Dicionario-de-Filosofia-Nicola-ABBGNANO.pdf ›. Acesso em: 02 Sep. 2017.
[2] Disponível em: ‹https://dicionariodoaurelio.com/conceito›. Acesso em: 02 Sep. 2017.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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