Programa “Fala Brasil” ou “Fala Dinamarca”?

Raramente vejo TV aberta no Brasil. Além do Jornal Nacional da Globo, vejo alguns programas das TVs públicas. Novelas: nem pensar – apesar de reconhecer o trabalho e a expertise profissional que o país conquistou nessa área, graças a um sem-número de trabalhadores que atuam na frente e atrás das câmeras.

Por Helio Santos Do Brasil de Carne e Osso

Hoje – sábado, dia 11 – ao me exercitar no espaço de ginástica do prédio onde resido em Salvador, tive de compulsoriamente assistir ao programa da TV Record: “Fala Brasil”. Nunca utilizo da TV daquele espaço, mas a vizinha que já se encontrava naquele local havia ligado o aparelho. Logo vi que era um programa que ia em rede nacional (NET) e em pouco tempo observei que dentre os inúmeros repórteres das diversas cidades que participavam daquele “Fala Brasil”, todos eram, pelos nossos padrões, brancos – quase todas elas mulheres, inclusive as duas âncoras do programa.

O último Censo do IBGE (2010), informa que 50,7% da população brasileira é preta e parda (jargões usados desde 1872). Somos, portanto, um Brasil de maioria afrodescendente. Do ponto de vista socioeconômico, não há diferenças significativas entre os dois subgrupos que, tecnicamente, há décadas, têm sido tratados como um único segmento. É uma heresia antropológica denominar esse programa da TV Record de “Fala Brasil”. Fosse ele feito na Dinamarca ou Holanda, provavelmente, ter-se-ia pelo menos um repórter não-branco, ciosos que são do valor da Diversidade. Ou seja, os telespectadores têm de se identificar com quem apresenta o programa. A Record, uma TV aberta, com certeza estatística, tem entre os seus telespectadores muitos negros – há chance até de ser uma maioria negra, já que a classe média, em larga medida branca, foge com razão para a TV por assinatura.

Não me venham com reducionismos do “politicamente correto” que intelectuais malformados tentam ridicularizar em textos de sucesso, num país “moralmente incorreto” desde sempre. Aqui, falo da incompatibilidade entre aqueles que apresentam os fatos e os que os recebem em casa! Portanto, falo do “profissionalmente correto”, no caso em questão; incorretíssimo!

Temos neste incrível país, mulher negra baleada que, como um objeto, é arrastada em viatura policial rumo a um hospital e morre; apresentadora de TV sendo agredida por racistas ensandecidos pelo seu sucesso; assassinato coletivo de jovens negros por PMs, como ocorreu no bairro do Cabula, recentemente em Salvador e, finalmente, temos um programa de TV com o enigmático título “Fala Brasil”, que mais parece um ensaio televisivo nórdico. Quanto ao programa, é importante esclarecer que os fatos que são apresentados têm muitos negros: o sequestrador, a mulher que vende cachorro-quente, o grupo de pagode (todo preto) que contracenou com um pipoqueiro, um garoto obeso que teima em comer guloseimas. Ou seja: o Brasil de carne e osso tem negros às escâncaras, mas quem apresenta as reportagens segue um padrão estético que nem de longe reflete a exuberante diversidade da beleza das mulheres brasileiras. Tem-se uma homogeneidade branca; radicalmente branca. São as tais cotas de 100% para brancos que critiquei em meados dos anos 1990. Vinte anos já se passaram, mas este anacronismo ainda persiste de forma abusiva num país que um dia imaginou modernizar-se.

AÇÃO & REAÇÃO

Sabe-se que esta lei da física (Terceira Lei de Newton), historicamente, tem valido não só para explicar corpos que respondem em sentido contrário em virtude de uma pressão sofrida. Grupos humanos, em diversos contextos, têm agido assim com sucesso. Pois passou da hora da maioria negra brasileira se posicionar. Muitas lideranças negras estão partidarizadas em seus nichos convencidas de que fazem o melhor. Durante todo o tempo em que militei em partidos procurei fugir deste figurino por uma razão simples: a sociedade brasileira é sofisticadamente racista. Os partidos – o nome o diz – são pedaços da sociedade, assim como a polícia, os parlamentos e a justiça – além da mídia é claro.

Tem-se aliados – é verdade – em todas essas instâncias. Mas sem autonomia não há ação possível capaz de dar conta de enfrentar essa hidra de duas cabeças que é o racismo brasileiro. Não se vai curar a sociedade sem diagnóstico acompanhado de terapia. Hoje, dispõe-se de diagnósticos para todos os gostos. Terapia; não. Faltam políticas e monitoramento das que já existem e que foram duramente conquistadas. Depois, há que se desenvolver estratégias efetivas para romper com padrões estéticos e culturais dos meios de comunicação incompatíveis com os mais de 100 milhões de afrodescendentes brasileiros, que o técnico da seleção sugeriu gostarem de apanhar. Não é cabível dar razão a este senhor. Nota-se a ausência de uma unidade que dê conta de produzir uma pedagogia reversiva da doença de fundo psico-racial que assola o Brasil. Tal síndrome, posterga o seu desenvolvimento verdadeiro – um desenvolvimento integral, onde os talentos, todos eles, devam ser aproveitados.

No passado, a ancestralidade negra civilizou o Brasil pelo trabalho (350 anos de escravismo). Sabe-se que, em larga medida, a cultura que energiza o País é negra. Por outro lado, as políticas afirmativas inauguraram mudanças que por séculos foram retidas e parece que para consolidar o gigante Brasil em termos culturais e identitários, temos que alterar cirurgicamente os padrões midiáticos que revelam um País que não somos.

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