Quando a Rainha Nzinga Trouxe Mar a Minas

Cena do filme A Rainha Nzinga chegou/ Divulgação 

Nos idos tempos em que a América do Sul e a África era um continente só, antes do abalo sísmico causado pela Europa, Minas tinha mar; tanto é que tem um bairro na cidade de Betim que se chama Angola.  Foi nesse pedacinho de África mineira que Dona Maria Casimiro fundou a Guarda 13 de Maio em 1944. No que deu quatro décadas, sua filha Dona Isabel Casimiro das Dores Gasparino foi coroada Rainha Conga de Minas devido ao passamento de Dona Maria, cumprindo a tradição matriarcal. Princesa da Guarda desde os cinco anos de idade, Dona Isabel foi coroada Rainha aos 45 anos e  por 31 anos presidiu a Guarda de Moçambique e Congo Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário. Como se não bastasse, por mais de duas décadas foi Rainha Conga do Estado de Minas Gerais. Antes tarde do que nunca, em 2014 Dona Isabel foi agraciada com o prêmio “Mestres da Cultura Popular de Belo Horizonte”, concedido pela Fundação Municipal de Cultura.

Por Viviane Pistache para o Portal Geledés 

Esta e outras histórias sobre Dona Isabel podem ser conferidas no filme A Rainha Nzinga chegou, dirigido e protagonizado  por sua filha Belinha que compartilha a direção com Júnia Torres. O documentário está competindo na Mostra Aurora da 22a. Mostra de Tiradentes. Tenho pra mim que uma das cenas mais marcantes do longa é a que traz Dona Isabel chamando o nome de batismo e registro sua filha, carinhosamente apelidada de Belinha. Dá gosto de ver Dona Isabel pronunciando o nome completo de sua filha: Isabel Casimira Gasparino. Um nome que carrega a força de uma ancestralidade re-significada. Ao evocar o nome da família, Dona Isabel convoca Belinha a assumir seu legado. O que acontece com o repentino passamento de Dona Isabel no dia 02 de junho de 2015, aos 76 anos.

Com essa inesperada notícia,  nosso congado chorou tanto que até ressuscitou o litoral de Minas, que por um instantinho, teve mar de novo. Mar de Angola que beijou as Lágrimas de Nossa Senhora, da coroa de Belinha do Sagrado Rosário dos Pretos Velhos de Aruanda. Foi feita a travessia reversa. O navio negreiro até estava lá todo enferrujado e encalhado, assombrando a paisagem, como um pesadelo que nunca vamos esquecer. Mas como Dona Belinha bem lembrou, ela navegou os céus, escoltada pela Guarda, pois ela tem ciência de que não anda só. Por isso ela nem temeu mais as turbulências do marear. E assim, nas asas de metal ela voou por cima do temporal pra nossa estrela natal.

Dona Belinha é aquela voz de tambor que re-traduz nossas tradições afro-futuristas com uma fabulosidade que nos arrepia todinha. Igual quando ela visitou Ngola e Matamba, pra pisar nas terras onde a guerreira Nzinga reinou e lutou contra a invasão portuguesa. As nossas pegadas ancestrais demonstram que nossos antepassados tinham “um senhor pé” tão grande que enquanto o  direito tava aqui, o esquerdo estava a quilômetros de distância, numa passada tão veloz que chegavam a voar. Ou como nos versos de Sérgio Pererê que Dona Belinha lembrou bem: “pois meu velho abre caminho ou me leva pelo ar”.

Quando Belinha chegou no sítio arqueológico que preserva as pegadas de Nzinga ainda menina, ela não se conteve. Experimentou pra ver se o pé dela cabia na pegava. No que deu o encaixe perfeito, imediatamente Dona Belinha faz florescer a canção “eu pisei na pisada da Nzinga.  eu pisei na pisada da vovó. Eu pisei na pisada da Nzinga, eu pisei na pisada da vovó.” Sim, ela é encantadora. Como se não bastasse, Belinha descobre que do lado do hotel onde ela estava hospedada, havia um pé de Lágrimas de Nossa Senhora, aquela qualidade de semente que se usa nos rosários e na coroa no congado. Belinha ficou abismada com o tamanho das sementes: “cada bitelona!”. Ela até colheu um bocadinho de sementes que germinaram valentes no seu reinado no Concórdia, em Belorizonte.

É aquilo né, o que tem aqui tem lá do lado de lá do mar. Seja semente, seja gente. Foi em Angola que Belinha se deu conta que toda gente preta tem um clone em África, de tão parecidos que somos. Em Angola ela reviu um conhecido, Seu Dandico, já falecido há muito. Mas como ela mesmo disse “ o cenário foi preparado pela ancestralidade”. Quem iria na viagem era a sua mãe,  mas com seu passamento inesperado, Belinha, que tem o mesmo nome da mãe, consegue viajar com a mesma passagem, inclusive.

Foi uma viagem de luto e luta. O ritual do velório de Dona Isabel casou plenamente com o ritual de visita aos túmulos onde repousam nossos antepassados, guerreiros que resistiram à ocupação portuguesa, como a Nzinga. Motivo pra lamentar a gente aos monte, mas não podemos perder a chance de celebrar toda vez que podemos. Como bem disse Dona Belinha: “cada milímetro avançado, é um quilômetro conquistado”.

Interessante que o filme A Rainha Nzinga chegou foi exibido um pouco antes do curta-metragem Negrum3 de Diogo Paulino. O jovem negro, de vinte e sete anos trouxe para as telas uma ousada proposta do gênero afro-futurista. Ele disse que faz filmes de raiva, com raiva e a partir da raiva. Ele faz do ressentimento de ser cotidianamente violentado, a matéria-prima para a revolta. Fiquei pensando na diferença de temperatura entre a fala dele, afrontosa e urgente, com a da Dona Belinha, calma e encantada como quem entra na guerra sempre pra vencer. Me dei conta de que ambos fazem revolta e celebram. Ainda que em tom de contestação, Negrum3 celebra a vida da juventude negra trans-viada, feminista e sapatão que tá viva, ao passo que Dona Belinha celebra a tradição herdada e ambos se encontram lá, na esquina do passado com o futuro, onde o presente se faz possível.

Sam davi que guese gonê! Na cerimônia de abertura da 22a. Mostra tocou uma música bem interessante. Se chama Gonê do rapper Filipe Rete. O jovem resgata uma língua inventada no bairro do Catete no Rio de Janeiro pela resistência para driblar a censura durante a ditadura. O idioma que ficou conhecido como Gualín do TTK usava a artimanha de dizer as palavras com as sílabas invertidas. Assim, o título da música Gonê traduzido significa Nêgo.  E Sam davi que guese ganê,  é vida que segue nêga! Assim, me ocorreu que o reverso da RAIVA de Diogo Paulino pode ser o AVIAR de Dona Belinha, essa griot que avia a vida tanto navegando os ares quanto no aviamento perfeito com o qual ela faz a costura da vida. Na linha do céu ela é estrela, na linha da terra é rainha.

Poderia terminar por aqui essas linhas, mas seria desonestidade intelectual deixar de mencionar que o documentário A Rainha Nzinga chegou, causou ruídos à boca miúda, enquanto o debate foi absolutamente afetuoso. As críticas que ouvi se referem ao olhar da câmera que peca por seu amadorismo e etnografia rota. Sem querer tomar partido da diretora Júnia Torres, me agrada o fato de ela ter revelado que a primeira câmera no terreiro está nas mãos de Cida Reis, mulher negra pioneira no áudio-visual mineiro e que também assina a produção do filme. É importante ainda ressaltar que Júnia foi convocada por Belinha para fazer os registros.

Guardada as devidas proporções, me fez lembrar de um fato relatado na Afrografias da Memória, de autoria da professora negra da UFMG, Leda Maria Martins. Tendo sido princesa da Guarda de Congado de Jatobá em Ibirité, Minas Gerais, ela foi escolhida pelo capitão-mor da guarda, João Lopes, que no leito de morte a elegeu a pesquisadora digna de ser guardiã privilegiada da memória deste reinado negro mineiro. Tem-se aqui um raro e belíssimo caso em que a intelectual é escolhida pelo sujeito, subvertendo hierarquias tão consentidas nas pesquisas tradicionais, nas quais a experiência do Outro fica à mercê do bel prazer dos investigadores. Houve ainda quem tencionasse o tom essencialista de uma Africa mítica e dos elementos católicos da tradição do congado.

Polêmicas à parte, o documentário é em grande medida fruto de uma bela amizade e um registro necessário de nossa ancestralidade. O acervo está garantido e as análises a gente vai disputando com o tempo. Felizmente temos as interpretações sobre os fatos da podem variar no tempo e espaço. E como me disse Dona Belinha em entrevista exclusiva: “A gente gostaria de fazer o ideal, mas fazemos pelo menos o possível”.

 

Viviane Pistache é psicóloga, roteirista e crítica de cinema. Preta das Gerais com mania de ter fé na vida.

 

Leia Também:

Em Tempos de Necropolítica Reinventamos a Necropoética.

Sobre Necropoética e Cinema Negro com Sotaque Mineiro


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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