“Quando fere minha existência, serei resistência”

É fácil?
Tá fácil ser mulher preta não, é chicote estalando de todo lado!
Haja resistência, mas Não se cale! Não silencie suas dores! Reaja!

Por Tatiane Souza, enviado para o Portal Geledés

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Quando fere sua existência, seja resistência!
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Mulher preta não pode ser? Não pode estar e fazer o que quer?
Se você estuda demais, você é arrogante!
Se não estuda, você é preguiçosa!
Se trabalha demais é egoísta
Se fala algo ou tem opinião, é metida!
Se nos posicionamos, somos raivosas!
Se argumentamos, somos loucas!
Se criamos ações, somos censuradas!
Se propomos, somos ridicularizadas!
Se amamos, somos desprezadas!
Se temos qualidades, não consideram!
Se temos defeitos, somos julgadas!
Se somos persistentes, somos apenas suficientes!
. Não podemos ser humanas?
. Porque nosso esforço tem que ser sempre melhor e maior do que o dos outros?
. A todo tempo somos discriminadas e rejeitadas pelos racistas (e/ou machistas)!
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Raça – Racismo – Gênero – Patriarcado – Violência: tudo direcionado a um corpo!
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Tem sempre um racista falando que não somos dignas de respeito e consideração!
Tem sempre um racista querendo diminuir ou deslegitimar nosso trabalho ou nossa ação!
Seja onde estivermos, independente do cargo, escolaridade ou posição que ocupa, para o racista (e machista), nunca seremos suficientes, haverá sempre uma crítica destrutiva, no sentido de te desqualificar enquanto pessoa, artista e/ou trabalhadora, por exemplo.
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Na boca dos racistas, nunca somos gente: somos tratadas feito verme, humilhadas, xingadas, abandonadas e maltratadas pelo fato de sermos quem somos!
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Quando não conseguem nos matar, matam nossa continuidade: matam nossos filhos!
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Nesse mercado racista, patriarcal e eurocêntrico, a carne mais barata ainda é a negra.
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Por isso, não se paute pelo que o racista acha de você, se paute por aquilo que somos!
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Como diz Marimba Ani; “nossa cultura é nosso sistema imunológico”.
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E essa cultura só pode ser nossa cura, quando é trabalhada de fato, quando resgata, preserva e educa pessoas a partir dos valores civilizatórios africanos; não é cultura por mero ritual ou crença, por mero interesse político ou acadêmico, é cultura por te fazer uma pessoa melhor, seja no aspecto individual ou coletivo. Esse sistema imunológico é nossa cultura, porque baseie-se em nossa ancestralidade. Entenda que:
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“a ancestralidade nos conecta: o que você faz a mim, você faz para você mesmo e o que faço a ti, faço para eu mesma. Estamos interligados, tudo está interligado. Não existe separação da vida; tua vida pessoal é continuidade da profissional, tua vida profissional é extensão da vida pessoal. Somos o que somos, somos o que fazemos, somos o que pensamos, somos seres com propósito, com pré-destino, com missão; nessa direção afroperspectivista, não existe acaso, existem ciclos e continuidades” (SOUZA, 2019).
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Há fluxo e refluxo. Tudo é movimento e tudo é cíclico, feito roda gigante, observe o movimento da roda gigante! E digo mais, tanto Bell Hooks quanto Paulo Freire, mostram que não há separação, cisão entre teoria e prática, quando nossa experiência construída ao longo da vida soma-se à construção e perspectiva teórica. Logo, a teorização está intrinsicamente ligada à vida.
A teoria na prática e a prática da teoria em vida devem ser a cisão de uma prática libertadora, pois não basta combater o racismo no coletivo e reproduzir o racismo nas relações pessoais; não basta homenagear comunidade negra e praticar auto-ódio consigo mesmo e com os outros, por exemplo. O racismo como estrutura foi impregnado no subconsciente por uma educação envenenada pelo eurocentrismo que desde a infância foi construindo a negação da nossa humanidade.
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O racismo estrutura até nossas emoções! Nossa luta não é somente pela razão, mas também pela descolonização de nossa emoção! Para trazer uma outra racionalidade que não provoca a separação entre mente e corpo, entre prática e teoria, entre o que se faz e o que se diz!
Nossa luta é árdua e esses processos educativos precisam ser conscientes para localizar e descolonizar e depois africanizar nosso pensamento e nossa ação. O que pensamos, falamos e fazemos tem que ser coerente com tudo aquilo que defendemos ou anunciamos.
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A teoria enquanto prática e a prática como reflexão da teoria, devem caminhar juntas como processo crítico e reflexivo que provoque mudanças de pensamentos, comportamentos e atitudes, que por sua vez, geram impactos significativos na vida das pessoas. Esse é um aspecto da ciência engajada que busca alinhar ativismo e construção teórica, proporcionando não somente o conhecimento, mas a “cura”, o despertar de consciência do indivíduo e/ou do coletivo diante dos impactos do racismo, e também, diante da imensidão do legado de África para o mundo. Nesse sentido, a escrita e a oralidade podem anunciar transformações de existência e de resistência.
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A resistência só é possível por que existimos, porque temos nossas vozes!
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Quando tentarem silenciar tua voz, fale e se faça ouvir!
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“Infinitas vezes, os esforços das mulheres negras para falar, quebrar o silêncio e engajar-se em debates políticos progressistas radicais enfrentam a oposição. Há um elo entre a imposição de silêncio que experimentamos e censura anti-intelectualismo em contextos predominantemente negros que deveriam ser um lugar de apoio (como um espaço onde só há mulheres negras), e aquela imposição de silêncio que ocorre em instituições onde se dizem as mulheres negras e de cor que elas não podem ser plenamente ouvidas ou escutadas porque seus trabalhos não são suficientemente teóricos” ou considerados bons (HOOKS, 1994, 95), tem sempre alguém querendo deslegitimar nosso trabalho.
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Por tudo isso, Decida Não se Calar!
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Temos que aceitar as injustiças caladas?
Temos que aceitar humilhações?
Temos que aceitar gritos, mandos e desmandos?
Aceitar os açoites, aceitar as acusações?
Aceitar os julgamentos e silenciar nossas dores?
Você acha mesmo que temos que silenciar nossas dores e aceitar os julgamentos?
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Quando não nos batem com as mãos, nos batem com as palavras, abrem feridas que doem até a alma, custa a cicatrizar, outras formam calos que traumatizam tanto que viram doenças físicas ou mentais… essa dor mata! É preciso terapeutizar, tratar, curar. É verbo, é ação e nosso primeiro ato de libertação é falar…
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Temos que trazer a fala silenciada, dentro e fora de Nós.
Temos que trazer e falar da dor causada pelo racismo em Nós.
Se assim for: Peça ajuda. Procure ajuda. Seja escuta, seja ajuda.
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Falar é cura.
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Decida Não se Calar!
Decida não se calar diante das opressões e só se cale se for estratégico e redefinir sua realidade!
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Decida ser quem você veio para ser, descubra-se e seja potência!
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Somos protagonistas e ao mesmo tempo somos vítimas de um sistema.
Somos injustiçadas socialmente.
Nós mulheres negras somos atacadas pelo ódio, discriminação, opressão, desigualdade e pela violência sistemática contra nós, e isso não se constitui num evento isolado e nem repentino ou inesperado;
Essa violência acontece todo dia e a qualquer momento e em qualquer lugar, principalmente dentro de casa e no trabalho. Toda hora tem uma mulher sendo oprimida.
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Segundo o Dossiê Violência contra as Mulheres, há um processo contínuo de violências contra a mulher, principalmente contra a mulher negra, cujas raízes misóginas e racistas se caracterizam no uso da violência simbólica à violência extrema. Essa violência se apresenta por uma vasta gama de abusos, desde verbais, físicos e sexuais, como o estupro, e diversas formas de humilhação, tratamento cruel, perverso ou degradante, mutilação e de barbárie (Instituto Patrícia Galvão, 2015).
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Alguns dizem em tom de deboche que somos as mais sofridas, as vítimas, os principais alvos da violência, mas os números confirmam essa realidade! Temos que dar visibilidade a isso e tratar o assunto com seriedade. Mulheres negras estão morrendo e de várias formas!
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O mapa da violência de 2015, mostra que a vitimização entre as mulheres negras no Brasil cresceu: em 10 anos, os homicídios de mulheres negras aumentaram 54%, enquanto o homicídio das mulheres brancas caiu 9,8%. Mulheres negras ainda são as maiores vítimas do feminicídio!
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Todo dia, da escravidão até os dias de hoje, milhares de mulheres negras são vítimas da:
violência doméstica
violência sexual
violência racial
violência de gênero
violência psicológica
violência moral
violência física
violência cultural
violência econômica
violência política
violência institucional
violência religiosa
violência virtual
violência informativa
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Essas violências isoladas, juntas ou combinadas nos atingem todos os dias dentro e fora de casa, no espaço público e privado na sociedade!
Todo dia lutamos por uma vida livre de todas as formas de violência!
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Todo dia lutamos!
Lutamos para não sermos excluídas
Lutamos para não sermos invisibilizadas
Lutamos para não ter nossas vozes silenciadas
Lutamos para sermos amadas
Lutamos para amar
Lutamos para ter e/ou permanecer nas relações
Lutamos para descolonizar nossos corpos, africanizando mente, alma e espírito
Lutamos para expressar o que somos
Lutamos para combater a dor causada pelo racismo
Lutamos para proteger nossas vidas
Lutamos para ter direito à vida.
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Nossa história importa…
Nossa cultura importa…
Nossa Vida Importa!
Nossa alegria importa!
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Nosso luto é luta!
Nossa luta é resistência!
Só é possível resistir, porque existimos!
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E o que é que nos dá força para lutarmos?
É nossa existência, é a fé na nossa espiritualidade…
É acreditar que nossos passos vêm de longe…
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Somos potências e a continuidade ancestral…
Do nosso ventre fértil saí a vida materializada ou espiritualizada
Somos guardiães e progenitoras de universos transcendentais
Somos matriarcas, mães, gestoras e gestantes
Somos muitas e milhares de mulheres pretas dignas de amar e sermos amadas.
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É o amor e a fé que nos nutre!
E apesar de toda dor e rejeição causada pelo racismo e patriarcado…nossa existência nos faz renascer a cada dia. Dia após dia nos levantamos para lutar pelo direito de existir…

26/10/2019, Tatiane Pereira de Souza, Ituitaba-MG.

Reprodução/Facebook

Quem escreve: Tatiane Souza é Congadeira do Terno de Congada Chapéus de Fitas, Pedagoga/UNIRP, Mestre em Educação/UFSCar e Doutora em Ciências Sociais/UNESP, Consultora, Palestrante, Professora e Pesquisadora das ciências e culturas da África e de sua diáspora negra; nesse sentido, em seu projeto @afroeducar, propõe a descolonização do saber e a africanização do saber/fazer a partir do legado africano.

Redes sociais:

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Projeto Afroeducar: https://www.instagram.com/afroeducar/


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