Racismo em Portugal e o mito colonial

O racismo em Portugal não se faz sentir através de uma tumultuosa e até romantizada história de luta e reivindicação social. Não se figura através de negras estatísticas de encarceramento penal ou em lutas populares como em Charlottesville, nos EUA. O racismo português possui um toque de subtilidade pós-colonial, feito através de finas luvas, em cafés e casas de classe média, níveis de desistência e alienação nas escolas, condições de infra-estrutura em certos bairros das cidades portuguesas e até pela pura necessidade de quotas e prioridade de entrada em faculdades e cursos.

É peculiar este aspecto da discriminação racial portuguesa. O acto de simplesmente referir o racismo institucional em Portugal levanta dúvidas nas mentes do público, desperta pequenas indagações sobre quem é realmente o injustiçado nesta história. No caso dos EUA, o racismo e discriminação são temas presentes e comuns no debate e discurso político e social. Toda uma complexa história de escravatura, segregação e luta por direitos levam a que a posição do afro-americano na sociedade norte-americana seja um tema comum nos dias que correm. E no caso dos países da Europa Ocidental e do Norte, com densas e elevadas populações imigrantes, também é recorrente a problemática da xenofobia e de uma certa dívida histórica para com povos não-ocidentais e pós-colonizados. O problema do racismo e da discriminação existe sempre que há uma etnia, um povo, um grupo que possa ser discriminado em primeiro lugar.

A grande questão no caso do racismo em Portugal reside na indagação sobre a sua veracidade e prevalência no quotidiano da sociedade portuguesa. Segundo os Censos de 2011, residem em Portugal entre 150 mil e 200 mil afro-portugueses, originários e descendentes maioritariamente de Cabo Verde, Angola e Moçambique, as antigas colónias ultramarinas de Portugal. Logo, de que maneira funciona a nossa relação com os afro-portugueses?

A própria democratização de Portugal injustiçou os povos colonizados, quando o povo e a inércia revolucionária do 25 de Abril não possuíam uma agenda política real e responsabilizadora perante a existência do ultramar. O maior interesse dos revoltados de Abril era que a guerra colonial acabasse, e a acendalha que levou à sublevação por parte do oficialato português não foi uma compaixão profunda pelos povos colonizados, mas sim um desejo de não serem enviados para África. Esta reivindicação é perfeitamente válida dentro do contexto da democratização de Portugal, mas irrelevante dentro da problemática de criar um espaço de comunicação e ajuda verdadeira com os antigos colonizados.

A descolonização no rescaldo do 25 de Abril foi muito mais uma consequência inconsciente da jovem República dentro do espaço internacional do que uma verdadeira acção que seguisse uma filosofia de libertação e independência nacional dos povos africanos. O movimento do 25 de Abril não era descolonizador, mas sim democrático, e foi esta falta de sensibilidade para com os povos africanos e descolonizados que levou à permanência da cultura discriminatória e enfatizadora da colonização e à posterior exclusão social dos afro-portugueses. E as consequências desta mistura de condições políticas e da nossa relação com os povos africanos levam a uma situação peculiar para os afro-portugueses. Na qual a concentração de imigrantes africanos em bairros degradados nas periferias metropolitanas de Lisboa, o racismo institucional dos órgãos do Estado e da sociedade e até o mais simples e quotidiano racismo que sai das bocas da população portuguesa estão dissimulados por aquele que é um verdadeiro mito colonial.

O racismo em Portugal não é discutido porque como cultura acreditamos que não necessita de discussão. Como em muitos casos se fez, nós escrevemos a nossa própria história de conquistas nacionais, e nela somos sempre os heróis. Na mente do português, as viagens de “descoberta” e os territórios ultramarinos não são pedaços de exploração e dominância de povos estrangeiros, mas algo que é português, é nacional e uma parte da nossa história de que nos devemos orgulhar, sem questionar as suas consequências. Um dos maiores exemplos desta celebração irresponsável face à existência do racismo em Portugal está em todas as instituições culturais e estatais que celebram a história de navegação e exploração como uma espécie de recompensa portuguesa ao resto do mundo, tratando monumentos como o Padrão dos Descobrimentos como altares de uma epopeia nacionalista que fingimos não ter sido invenção salazarista.

Mais de 40 anos depois de se fazer a democracia, o afro-português é um cidadão vítima de processos institucionais de exclusão social e discriminação, comuns em países do mundo ocidental, mas único no caso português, pois está dissimulado por uma cultura e mentalidade nacional de orgulho irracional e irresponsável pelos processos coloniais portugueses. Em suma, a sociedade portuguesa não ultrapassou o mito colonial, não aconteceu um processo cultural e social de lenta mitigação desta mentalidade. Isto leva a que o racismo em Portugal seja uma realidade, mas uma realidade escondida por uma ilusão em que todos os portugueses foram mergulhados desde os tempos do Estado Novo.

 


Guilherme Machado – Natural de Cascais, é um estudante do ensino secundário, voluntário da Amnistia Internacional e envolvido em causas sociais como a luta estudantil.

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