Quatro casos de racismo vieram à tona, no Rio, nas últimas duas semanas. Além do trabalho que a polícia tem pela frente — na investigação de crime previsto por lei —, servem de alerta. São histórias cotidianas, cada qual com suas características, mas que ilustram realidade incontornável: práticas racistas ainda são comuns e demandam vigilância e ação de todos.
Segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), em 2022 houve 322 registros de preconceito por raça, cor, etnia, religião, procedência nacional ou homofobia no Rio. O número representa um aumento de 92% em relação a 2021 e supera a soma dos casos que chegaram à polícia em 2020 e 2021. A maior parte das vítimas (51%) é do sexo feminino, e quase 65% são pretas ou pardas.
— Hoje a gente vê mais casos porque há uma reação maior dos atingidos. Antigamente as pessoas eram vítimas de racismo, iam para casa e ficavam quietas, absorviam aquilo. Tinha um conformismo dos mais velhos em relação a isso. Havia uma noção de que aquilo não dava em nada, que era melhor ficar calado. Isso mudou muito. Então não é que há mais casos hoje. É que agora as pessoas denunciam, a imprensa dá destaque, e os casos são expostos. É assim que tem que ser — explica o babalawô Ivanir dos Santos, professor do programa de pós-graduação em História Comparada da UFRJ.
Durante uma consulta, a ginecologista Helena Malzac Franco, que atende na Zona Sul do Rio, fez considerações sobre o odor na genitália de uma paciente. Segundo a médica, a causa teria relação com características de sua “cor e do pelo”. A vítima, uma jovem de 20 anos que prefere não se identificar, ficou insegura de voltar a um consultório médico. O caso, identificado como “racismo científico”, aconteceu em fevereiro do ano passado e foi imediatamente denunciado à polícia e encaminhado à Justiça, mas só se tornou público a partir de reportagem veiculada anteontem pelo Fantástico, da TV Globo.
— Tenho muito receio de acontecer de novo. Minha madrinha me ajudou, e estou fazendo acompanhamento com uma terapeuta, que me ajudou a entender e a não me sentir insegura. Foi tudo muito violento. Não esperava ouvir aquilo — disse a vítima.
O Ministério Público do Rio denunciou Helena Malzac pelo crime de racismo, por entender que a médica se referiu ao conjunto de mulheres negras. Ela se tornou ré e, em 31 de maio, foi interrogada na ação a que responde no Tribunal de Justiça do Rio. Durante a audiência, a ginecologista defendeu-se dizendo ter estudado sobre o tema na faculdade e pesquisado sobre o assunto.
Outros dois casos foram registrados neste fim de semana, também na Zona Sul. Num deles, o segurança Lucas Rodrigues Neves, do restaurante Babbo Osteria, em Ipanema, afirma ser vítima de ataques racistas por parte de Aloísio Augusto da Costa, de 83 anos, e de seu filho. O motivo: um banco colocado em frente ao prédio do agressor. Em vídeo, o idoso aparece chamando-o de “neguinho” durante uma discussão.
Elia Schramm, chef e proprietário do restaurante, afirma que dois registros de ocorrência foram feitos denunciando o crime. Um no último sábado e outro em 15 de maio.
— É um sentimento muito ruim. Meu pai passou por isso, meu avô passou por isso. Eu sou pai e estou lutando para que meu filho não passe. A única coisa que eu quero é justiça, que não seja um caso esquecido, mais um caso isolado onde nada acontece — disse Lucas, em entrevista ao Jornal Hoje, da TV Globo.
Segundo a vítima, os ataques vêm se repetindo há meses. Ontem, Aloísio era esperado na 14ª DP (Leblon) para prestar depoimento, mas alegou questões de saúde e pediu adiamento para amanhã.
Não muito longe dali, em Copacabana, a empacotadora Talita do Nascimento Ramos, de 31 anos passou por situação semelhante, no sábado, durante expediente no supermercado Mundial da Rua Siqueira Campos. Ela conta que, ao pedir passagem a uma cliente, encostou no seu ombro. A reação surpreendeu os presentes. De acordo com Talita, a mulher começou a gritar e dizer coisas como “não encosta em mim, tira a mão de mim, não tem nada que me tocar”. A empacotadora começou a chorar. Na sequência, a mulher disse, em tom de deboche: “só porque é pretinha?”
— Meus colegas e superiores vieram em minha defesa na hora. Nunca tinha passado por nada parecido. A gente não pode deixar para trás. Tem que denunciar mesmo, se não as coisas nunca vão mudar — disse Talita.
Procurada, a rede Mundial não se posicionou sobre o fato.
No quarto episódio rumoroso e recente de racismo, as influencers Kérollen Cunha e Nancy Gonçalves, denunciadas no fim de maio, foram ouvidas ontem por mais de quatro horas na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), no Centro. As duas são investigadas por causa de vídeos publicados em suas redes sociais — onde acumulam mais de 1 milhão de seguidores — nos quais humilham duas crianças e uma mulher negra oferecendo “presentes surpresa” como bananas e um macaco de pelúcia. Os três casos aconteceram no bairro Jardim Catarina, em São Gonçalo. A “brincadeira” começou a ser investigada pela polícia depois que a advogada Fayda Belo denunciou a dupla, revelando a prática de racismo recreativo.