Racismo foi perpetuado no Brasil pelo silêncio, mostra série de Joel Zito Araújo

Joel Zito Araújo analisa a discriminação em 'A Ética do Silêncio', produção que estreia nesta sexta (17) no canal Curta!

Em julho de 1880, no Rio de Janeiro, saiu o primeiro número da Gazeta da Tarde, um jornal arrojado para a época. O principal responsável pela publicação era Ferreira de Menezes, um intelectual versátil, que transitava do direito à dramaturgia, do jornalismo à literatura.

Oito anos antes da abolição da escravatura, o jornal passava a denunciar casos de negros libertos que voltavam a ser escravizados e publicava artigos contundentes contra o “preconceito de cor”, como se dizia à época. A Gazeta da Tarde se tornou voz influente do movimento abolicionista.

Poucos de nós, no entanto, têm ideia da relevância de Ferreira de Menezes, um entre tantos casos de mulheres e homens negros de atuação marcante nas suas épocas, que foram deixados de lado nas décadas seguintes.

Com estreia nesta sexta (17) em meio ao mês da Consciência Negra, a série documental “A Ética do Silêncio” tem como um dos seus objetivos apresentar ao país aqueles brasileiros que jamais deveriam ter sido esquecidos.

Com cinco episódios em exibição no canal Curta!, a produção é conduzida por Joel Zito Araújo, diretor de documentários, como o premiado “A Negação do Brasil” (2000), e filmes de ficção, tais quais “Filhas do Vento” (2005) e “O Pai da Rita” (2021).

Percorrendo um período que vai da Independência aos dias de hoje, “A Ética do Silêncio” aposta em duas frentes principais, explica Araújo. A primeira discute como o Brasil institucionalizou o racismo sem recorrer a leis ou se servindo apenas de normas que tentavam disfarçavam a discriminação, como a lei da vadiagem (1941), de Getúlio Vargas.

Joel Zito Araújo, diretor da série “A Ética do Silêncio”, que será apresentada pelo canal Curta! (Foto: Danilo Verpa/Folhapress)

“Não tivemos no Brasil nenhuma lei que estabelecesse o apartheid, como na África do Sul, ou que oficializasse a segregação racial, como a Jim Crow no sul dos EUA”, lembra o cineasta.

O segundo alvo é demonstrar que os grandes protagonistas nas lutas contra o racismo e a escravidão foram os próprios negros. Assim, a série ressalta nomes hoje celebrados, como o advogado abolicionista Luís Gama e a antropóloga Lélia Gonzalez, e outros ainda pouco conhecidos, como o citado Ferreira de Menezes.

Esse debate sobre protagonismos nos leva ao título da produção: “A Ética do Silêncio”. Para a historiadora Hebe Mattos, consolidou-se no Brasil ao longo do século 19 um pacto silencioso em torno “de uma branquitude imaginada, que vai embranquecendo toda uma história da intelectualidade negra”. Essa é, segundo ela, uma das grandes questões do racismo no país.

A historiadora Hebe Mattos em ‘A Ética do Silêncio’, série que discute o racismo ao longo dos mais de 200 anos da história do Brasil; ela também é uma das roteiristas da produção (Foto: Divulgação)

Ainda de acordo com a historiadora, o “Estado imperial incorporou essa ética do silêncio, expondo uma ambiguidade. Não se falava da cor da pele para a população, não existia cor em situações burocráticas. Prevalecia um espaço confortável de desracialização. Por outro lado, aumentava o tráfico ilegal de africanos escravizados.”

Mattos assina o roteiro ao lado de Araújo e da também historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, diretora do Arquivo Nacional.

Ana Flávia Magalhães Pinto em cena da série ‘A Ética do Silencio’, em exibição no Canal Cultura; a historiadora também é uma das roteiristas da produção (Foto: Divulgação)

No primeiro episódio, Magalhães Pinto chama a atenção para “um sujeito coletivo que precisa fazer parte do nosso repertório, as pessoas negras libertas e aquelas já nascidas livres, uma experiência que antecede 1822.”

Uma visão maniqueísta costuma dividir a população desse período em duas partes, os negros escravizados e os brancos —quando cerca de um terço dos habitantes das primeiras décadas do Brasil Império era formado pelos “livres de cor”, como eram chamados os negros que conquistaram sua liberdade durante a vida ou que já nasceram livres.

“O Brasil tinha a maior população negra livre e liberta das Américas no início do século 19”, afirma Magalhães Pinto. Entre os que nasceram nessas condições naquele século, estão escritores como Cruz e SousaMachado de Assis Maria Firmina dos Reis; e engenheiros como André Rebouças e Teodoro Sampaio. Médicos como Juliano Moreira Maria Odília Teixeira, e jornalistas como Francisco de Paula Brito e José do Patrocínio. E segue-se um longo etc.

A ética do silêncio, segundo a historiadora, tem buscado apagar essas figuras da nossa memória ou, ao menos, dissociá-las da sua origem negra.

Embora seja primordialmente documental, a série conta com a participação de atores. Começa, aliás, com uma cena em que escravizados oriundos de diferentes regiões da África são obrigados a renegar a espiritualidade trazida da terra de origem para, diante de um padre, aderir à religião católica.

Mais adiante, surgem interpretações de textos antirracistas. O ator Thiago Justino, por exemplo, revive Monteiro Lopes, um dos primeiros deputados negros do país, e Alexandre Sil lembra o escritor Lima Barreto.

A série ainda lança mão de uma vasta pesquisa iconográfica, com pinturas, gravuras, fotografias e trechos de filmes. Além disso, ouve especialistas que analisam, com didatismo, os meandros da discriminação ao longo de mais de dois séculos.

A apresentação do próprio diretor costura todos esses elementos, uma opção tomada pela primeira vez em seus mais de 30 anos de carreira. “Eu trago a minha voz como reflexão da história.”

Para Hebe Mattos, a série procura, de certo modo, “recontar a história do Brasil, jogando luz sobre pessoas que são esquecidas pelo racismo institucional. Não é apenas lembrar a exclusão, com o andar de cima e o de baixo. Queremos incluir mais gente nessa história”.


A ÉTICA DO SILÊNCIO

  • Quando Sex. (17)
  • Onde Canal Curta!
  • Classificação livre
  • Elenco Alexandre Sil, Carlos Thiré, Cyda Moreno, Deo Garcez e Flavia Souza
  • Direção Joel Zito Araújo
  • Apresentações primeiro episódio, “Brasil Monárquico – O Silêncio Constitucional”, na sexta (17), às 23h; sábado (18), às 3h e às 10h45; domingo (19), às 21h; segunda (20), às 17h; terça (21), às 11h. Um episódio por semana
  • Duração em torno de 50 min. cada episódio
  • Roteiro Ana Flávia Magalhães Pinto, Hebe Mattos e Joel Zito de Araújo

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