Sobre o Encontro de Mulheres Negras do Cone Sul na Argentina

No dia 17 de fevereiro de 2018 foi realizada na sede da Sociedad Caboverdeana de Socorros Mútuos, na provìncia de Avellaneda – vizinha à capital portenha – o primeiro encontro do projeto Mujeres del Cono Sur: Su Retrato en Preto y Blanco. Foi  um dia memorável para o feminismo negro na Argentina, contribuindo para o fortalecimento e legitimação do movimento no país. O evento reuniu cerca de 40 mulheres pertencentes a distintos movimentos sociais afrodescendentes da Argentina, Brasil, Chile e Uruguai para discutir a situação atual e as questões ligadas à defesa dos direitos das mulheres negras do Cone Sul.

por Denise Braz* e Bruna Stamato** enviado para o Portal Geledés

Foto Romina De León
Foto Romina De León

O encontro contou com a presença de representantes de associações como as argentinas Sociedad Caboverdeana de Socorros Mútuos, TeMA – Tertulia de Mujeres Afrodescendientes, Colectiva de Afrodescendientes de la Provincia de Misiones, Asociación TES – Teatro en Sepia, Asociación A Turma da Bahiana, Agrupación Xangô, Movimiento Afrocultural, Matambas e líderes históricas do movimento de afrodescendentes, como Pocha Lamadrid, fundadora da Asociación África Vive;  Colectiva Mujeres, de Uruguay; Organización Luanda, do Chile; e organizações Criola e Geledés, do Brasil.

O encontro partiu da necessidade de analisar algumas das propostas presentes nos documentos das Nações Unidas para o desenvolvimento humano – os  Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Foram escolhidos 4 dos 17 objetivos presentes no documento da ODS que fazem referência ao combate à pobreza, à garantia de educação inclusiva e de qualidade, à igualdade de gênero e o empoderamento da mulher negra e à promoção do crescimento econômico sustentável. Durante toda a tarde do encontro, as participantes, divididas em grupos, analisaram os 4 objetivos selecionados da ODS motivadas por 3 eixos de análises: a identificação dos problemas em relação aos objetivos, os dados já disponíveis sobre eles e seus impactos na vida das mulheres negras.

As principais discussões giraram em torno do Censo, da economia e da condição da mulher negra, sendo levadas em consideração uma perspectiva interseccional, pensando as distintas opressões às quais ela é submetida – racial, de gênero e classe  – e também o lugar que ela ocupa na sociedade latinoamericana como um todo, e, especificamente na Argentina.

Fotos: Romina De León
Foto: Romina De León

Uma das principais dificuldades em pensar a situação da mulher negra na Argentina é a falta de indicadores presentes no Censo. A pergunta sobre a identificação étnico-racial especificamente em relação aos afrodescendentes foi incluída apenas em 2010. Antes, para o Estado argentino, estava subentendido que sua população era formada somente por brancos. É importante destacar que a pergunta sobre os afrodescendentes só saiu em 10% das pesquisas das amostras, e, de acordo com este censo, existem 149 mil afrodescendentes no país[1]. Considerando as questões econômicas, se discutiu sobre a falta de uma política de Estado que controle a economia para que as mulheres negras possam sair da situação de vulnerabilidade social. Para Lucia Xavier, da organização Criola, ter trabalho e formação – inclusive acadêmica – não significa que a mulher negra vai conseguir sair dessa situação de pobreza se o Estado não mantém uma economia estável. De acordo com Susana Villarrueta, da associação TeMA – Tertulia de Mujeres Afrolatinoamericanas, é necessário levar em consideração as especificidades das mulheres afrodescendentes em cada país. Segundo a ativista, é fundamental desconstruir imaginários estereotipados e estigmatizados em relação as mulheres negras, como o fato de estarem associadas à mão de obra mal remunerada, pouco qualificada e desacreditada mesmo quando possuem formação para o exercício de determinada profissão. Entre outros assuntos que foram discutidos, as participantes destacaram a necessidade de formação política para as mulheres negras, a valorização das lideranças comunitárias e populares e a construção de uma força política de base para a luta contra o racismo que estrutura e mantém as desigualdades na região.

Foto Denise Braz
Foto Denise Braz

Vale a pena mencionar que na Argentina se está consolidando um movimento de mulheres negras que pensam sobre sua condição de gênero e constroem identidades e narrativas sobre si partindo de pontos de vista próprios.  O movimento vem tomando força nos últimos anos, especialmente a partir das celebrações do dia 25 de julho – Dia Internacional da Mulher Afrolatinoamericana e Caribenha –  desde 2015, e da realização de uma oficina específica para mulheres afrodescendentes a partir de 2016 no Encontro Nacional de Mulheres. Esta oficina foi incluída naquela que seria a 30ª edição do Encontro, tradicional atividade da agenda feminista argentina. Ainda que as mulheres afro-argentinas e afrodescendentes sempre tiveram um importante papel dentro do movimento negro no país, foi somente a partir desses marcos que elas conseguiram se organizar de maneira mais efetiva, ressaltando a perspectiva de gênero para a reivindicação de suas demandas.

Para o desenvolvimento do projeto na Argentina será fundamental obter dados sobre a quantidade de mulheres negras residentes no país e sobre a situação em que vivem essas mulheres (uma vez que o Censo de 2010 não contemplou o recorte de gênero na questão étnico-racial). A partir desses dados, o objetivo é que se construa um documento que indique a situação das mulheres negras no país bem como nos demais países participantes do projeto.

Decidiu-se também criar uma ferramenta online com os dados obtidos para reivindicar aos Estados o desenvolvimento e, em alguns casos, a execução de políticas públicas que permitirá o acompanhamento por parte das distintas associações e organizações. Vicenta Camusso Pintos, coordenadora regional pelo Cone Sul da Red de Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribeñas y de la Diáspora e integrante da organização uruguaia Colectiva Mujeres, ressaltou a importância da união entre as mulheres negras no  Cone Sul  para a construção de uma agenda comum e o fortalecimento da luta contra o racismo, a desigualdade de gênero e a pobreza na região.


*Denise Braz, formada em Letras pela PUC Minas Gerais, é aluna do mestrado em Antropologia Social e Política da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires (tese finalizada). Militante feminista afro, é membro do grupo Comisión Organizadora del Día 8 de Noviembre, um coletivo que trabalha com mais de 30 movimentos afrodescendentes na Argentina, e da Área de Género da Comisión Organizadora 8 de Noviembre (e-mail: [email protected]).

**Bruna Stamato é formada em História pela UNIRIO e jornalismo pela FACHA – RJ, e aluna do mestrado em Estudos e Políticas de Gênero da Universidad Tres de Febrero (UNTREF) de Buenos Aires. Militante afrofeminista, é integrante da associação TeMA – Tertulia de Mujeres Afrolatinoamericanas e faz parte da Área de Género da Comisión Organizadora 8 de Noviembre (e-mail: [email protected]).

Fotos: Romina De León

[1] BRAZ, Denise.  Onde estão os negros na Argentina?. In: Revista da ABPN • v. 10, Ed. Especial – Caderno Temático: Letramentos de Reexistência • janeiro de 2018, p.363-374

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