Tradição

No candomblé, uma aula de como a resistência do passado alcança o presente

Por Flavia Oliveira Do O Globo 

Foto: Marta Azevedo

A ialorixá, chefe do terreiro, mãe de santo, guardiã das tradições, está sentada na imponente cadeira — melhor dizendo, em seu trono. Do assento, no extremo oposto à entrada do barracão, mira a aglomeração de filhos, familiares, fãs, fiéis. Há palmas, toque de atabaques, cantigas, pontos, canções. O povo reverencia os orixás e a dona da casa. E canta e dança e se confraterniza. Assim, o espaço do sagrado, dos segredos do candomblé, do culto à ancestralidade, cede lugar à cultura, ao ritmo, à diversão. Aconteceu no dia 20 de janeiro de 2016, no Ilê Omiojuaro, de Mãe Beata de Iemanjá, em Miguel Couto (Nova Iguaçu, RJ). Poderia ter sido cem anos antes, na casa de Tia Ciata, na Pequena África, ponto de resistência da religião africana e berço do samba no Rio de Janeiro.

Naquela quarta-feira, quando a capital homenageava o padroeiro católico, São Sebastião, um pedaço de chão na Baixada Fluminense cuidava de manter vivos os fundamentos de uma matriz religiosa perseguida, no passado, pelos colonizadores portugueses, pela Igreja, pelo Estado e, ainda hoje, por cabeças intolerantes do rebanho neopentecostal. De quebra, revivia a comunhão que deu no mais brasileiro dos ritmos musicais.

A tarde chuvosa e excepcionalmente fresca do alto verão brasileiro foi uma aula de como a resistência do passado alcança o presente. A roda festiva pelos 85 anos de Beatriz Moreira Costa, baiana de Cachoeira, reproduziu as reuniões dos então escravos nos campos coloniais e dos negros nos terreiros pós-abolição, numa mística subversão do espaço-tempo bem ao gosto de Exu, o orixá que faz a roda girar. “É marca registrada da casa a preservação tanto das tradições religiosas quanto do patrimônio cultural afro-brasileiro ”, confirma Adailton Moreira, filho biológico de Mãe Beata e herdeiro do axé. As festas têm música, percussão e poesia, numa referência também à transmissão oral de conhecimento típica do candomblé.

Na comemoração do aniversário da ialorixá, instrumentistas, ogãs e cantores se alternaram nas homenagens. Passaram pelo palco improvisado Marcelo Negreti, Maurício Monteiro e Fabíola Machado com o grupo Alaiyó, batizado por Mãe Beata com a palavra iorubá, que significa “senhor da alegria”. As apresentações visitaram a MPB de Roberto Carlos (“Emoções”) e Caetano Veloso (“Força estranha”); o samba de Dona Ivone Lara (“Mas quem disse que eu te esqueço”, “Eu vim de lá”, “Sorriso negro”), Wilson Moreira e Nei Lopes (“Senhora Liberdade”); a baianidade de Roque Ferreira (“Oxóssi”); os sucessos de Clara Nunes (“Conto de areia” e “O mar serenou”); a black music de Tim Maia (“Gostava tanto de você”), Wilson Simonal (“Nem vem que não tem”) e Claudio Zoli (“Noite do prazer”); o samba-enredo “A criação do mundo na tradição nagô”, que rendeu o primeiro tricampeonato à Beija-Flor, em 1978. Houve também, nas palavras de Pai Adailton, releituras rítmica e percussiva de cânticos de louvação aos orixás.

O escritor Alberto Mussa, cuja obra passeia por mitos e cultura africanos, lembra que, no terço final do século XX, quando os terreiros começaram a migrar para a periferia das grandes cidades, ainda era comum que, ao fim dos rituais religiosos, as reuniões nos terreiros se transformassem em rodas de diversão, com samba, comida e bebida. “Depois do xirê (sequência de culto aos orixás), vinha a roda de samba. O sagrado e o profano conviviam, não havia limitação de uso do território. No candomblé, a ideia do sagrado não está vinculada ao espaço, o corpo é o templo”, explica.

Haroldo Costa, escritor, ator e produtor cultural, sublinha que o samba é resultado direto da convivência religiosa, cultural e social dos descendentes de africanos escravizados. “A casa de Tia Ciata (1854-1924) era lugar dessa mistura cultural. Quando acabava o ritual dos orixás, começava a festa, que se estendia por todo o fim de semana. Num desses pagodes, nasceu ‘Pelo telefone’, de provável criação coletiva. As rodas de hoje nos terreiros mantêm a essência do passado”, afirma Costa, autor da biografia “Mãe Beata de Yemonjá — Guia, cidadã, guerreira” (Editora Garamond, 2010).

No recém-lançado “Dicionário da história social do samba” (Editora Civilização Brasileira), Nei Lopes e Luiz Antonio Simas explicam que o violonista e compositor Ernesto dos Santos, popularmente conhecido como Donga, registrou “Pelo telefone” como samba carnavalesco na Biblioteca Nacional, em 1916. Daí a comemoração, neste ano, do centenário do ritmo. Mas o pioneirismo é contestado. “Pelo telefone” pode ter sido o primeiro samba gravado ou a fazer sucesso. Mas, antes dele, haveria “Em casa de baiana”, anotado como samba de partido alto, cinco anos antes. Mas essa é outra história…

 

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