“Trafiquei mulheres por mais de 20 anos, comprava e vendia como se fossem gado”

Um dos criminosos do esquema revela em livro como essas redes funcionam na Espanha

Por MANUEL JABOIS, do El País

Imagem de arquivo de um local de prostituição. RAYMOND ROIG AFP

Na primavera de 2000 chegou ao aeroporto de Madri a seleção nacional feminina da Colômbia de taekwondo. Dezenove meninas que saíram pela porta em fila indiana, vestidas com o agasalho oficial (azul, amarelo e vermelho) estampado com o escudo da federação esportiva do país. Não tiveram problemas com a Imigração, apesar de ter sido um voo “quente”. Tinham seus vistos obtidos no consulado na Colômbia. Apresentaram suas fichas da federação e, então, o convite e o programa da competição que foram disputar na Espanha. Entre a documentação também contavam com papéis de uma academia de artes marciais de Cali em que estavam inscritas. Ao chegar a Madri, um micro-ônibus as levou para Valdepeñas, e lá trocaram os agasalhos por lingerie para serem exibidas ante um grupo de homens antes de serem distribuídas em diferentes casas da Espanha. Na Colômbia não existia nenhuma federação de artes marciais, as meninas nunca tinham pisado em um tatame, o agasalho fora encomendando por um criminoso, o convite e o programa da academia eram uma enganação, o treinador era o homem que as havia captado na Colômbia e o cafetão que as recebeu no aeroporto havia vencido uma aposta com seus sócios: conseguir colocar o maior número de mulheres em Madri para serem prostituídas. Como conseguiu, ficou com todas as mulheres e um BMW. Tratava-se de Miguel, o Músico.

“Oi, sou cafetão”. Essa foi a mensagem que recebeu a diretora Mabel Lozano, ativista contra o tráfico de mulheres (realizou dois filmes, o último Chicas Nuevas 24 Horas). Lozano já esperava a chamada. A preparação ocorreu graças à intermediação de José Nieto Barroso, inspetor-chefe da Unidade contra Redes de Imigração Ilegal e Falsidade Ideológica (UCRIF). Nieto Barroso estava há anos em contato com o Músico, que em um determinado momento de sua carreira no crime começou a colaborar com a Polícia como informante, delator. Músico foi um dos primeiros grandes chefes do tráfico e sequestro de mulheres na Espanha em uma década, a de 90, em que o negócio da prostituição mudou de patamar: em vez de serem os cafetões que forneciam mulheres aos clubes de prostituição da Espanha, foram os próprios clubes, através de uma estrutura mafiosa com infiltrações na polícia, na Justiça e na política, que começaram a “importar” milhares de mulheres estrangeiras enganadas. Sua longa confissão em forma de livro (El Proxeneta), comparada com datas, números e crimes em poder da UCRIF, é a primeira que revela o funcionamento do tráfico de mulheres e prostituição na Espanha. Um país no qual, segundo dados do Governo, são movimentados em torno desse negócio cerca de cinco milhões de euros por dia, e onde foram identificadas, em 2016, 14.000 vítimas de tráfico: um terço das mulheres captadas em seus países de origem pelas organizações criminais, muitas delas brasileiras.

“A primeira regra que se aprende é não olhá-las como suas, mas como a matéria prima do seu negócio. É importante não se envolver em sua vida além do necessário (…) Simplesmente é uma propriedade, como a Coca-Cola que você vende, e têm que ser tratadas como tal. Se envolver em suas vidas ou em seus problemas pode te afetar, porque essa mercadoria tem sentimentos (…) Criamos uma forma de vida que se sustenta graças à escravidão, sem sequer saber pensar (…) O tráfico de mulheres deu espaço para os macrobordéis para os clientes, que não eram outra coisa que prisões de luxo repletas de miséria para as mulheres escravas de um sistema novo e cruel. Transformamos as mulheres em grandes máquinas de fazer dinheiro”, diz Miguel, nome falso cujo apelido (Músico) é real, assim como as localizações e os sobrenomes dos outros cafetões, todos ainda na ativa ou presos: Chepas, Dandy, Gallego… “Não é um assunto de sexo, é um assunto de cabeça. Um bom cafetão não cobra por transar, cobra por ter todas as respostas adequadas para o que preocupa uma prostituta”, diz Iceberg Slim em um livro autobiográfico (Pimp – The Story Of My Life).

Leia a matéria completa em El País 

 

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