W.E.B Du Bois evidencia que a literatura negra sempre foi profícua

O racismo tem obtido mais relevância no debate público brasileiro, seja pela violência cada vez mais visível contra a população negra, seja pelas movimentações e movimentos negros. Uma das consequências desse processo é o maior interesse por obras que tratem da chamada “questão racial”, o que se reflete no que parece ser um boom editorial de autores negros, publicados em uma proporção inédita no país.

É nesse cenário que a nova edição de “As Almas do Povo Negro”, do intelectual americano W.E.B. Du Bois, morto em 1963, pode provocar uma inflexão nessa impressão sobre o mercado editorial.

Publicado em 1903, seu livro revela como a busca por uma liberdade efetiva do povo negro, diante das ilusões da abolição, está historicamente associada a um compromisso intelectual de compreender a sua situação à luz de suas próprias experiências, visões e críticas.

Nesse sentido, esse boom editorial é, na verdade, um dos efeitos de uma reivindicação histórica do trabalho intelectual negro. A despeito do processo de invisibilização desses saberes e conhecimentos, sempre houve uma profícua produção acadêmica de autoria negra.

Du Bois não chega, portanto, a um vazio; ao contrário, se soma a grandes intelectuais negros brasileiros, como Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento, Muniz Sodré, Beatriz Nascimento e tantos outros.

Nos 14 capítulos de “As Almas do Povo Negro”, que tratam, a partir da condição negra no pós-emancipação, de temas como trabalho, família, educação e religião, Du Bois, de forma analítica e dramática, revela como a “questão racial” é, fundamentalmente, uma questão existencial, política, artística e espiritual.

Entender a situação do povo negro é, desse modo, observar a vida, em sua complexidade, que milhões de pessoas —vistas como um “problema” a ser resolvido— são levadas a viver.

Mais do que utilizar estatísticas e teorias para analisar as desigualdades entre negros e brancos, Du Bois evidencia como o racismo tem impacto na própria possibilidade de fruir a vida, na medida em que define formas desiguais de nascer, viver e morrer.

Não à toa, canções de lamento, os “spirituals”, figuram no início de cada capítulo como a “mensagem articulada do escravo para o mundo”, pois ele vê nessa música a “expressão mais verdadeira da tristeza, do desespero e da esperança de um povo”.

Anos depois, em 1920, Du Bois aprofunda a qualidade literária de seu texto no conto “O Cometa”, recentemente publicado junto ao ensaio “O Fim da Supremacia Branca”, da historiadora Saidiya Hartman.

Considerado um dos precursores do afrofuturismo, o conto apresenta um cenário em que, após a passagem de um cometa por Nova York, restam como sobreviventes apenas um homem negro, uma mulher branca e o abismo existencial que os separa.

Como se fosse banido de um mundo em que “não está em casa”, como reflete Hartman, Jim Davis é protagonista de uma narrativa especulativa em que a fruição do direito de existir depende da destruição do mundo e do homem —categoria que nunca garantiu a vida dos homens negros—, pois só assim ele pode, por exemplo, navegar por espaços que antes lhe eram interditados.

Assim, enquanto “As Almas do Povo Negro” descortina os limites da abolição da escravidão a partir da vida daqueles que nasceram “desprovidos e fora do mundo”, numa “busca vã pela liberdade”, “O Cometa” nos provoca a pensar como a possibilidade de alcançar a liberdade e ver a estrela cantada pelos Racionais MCs —“negro drama/ tenta ver e não vê nada/ a não ser uma estrela/ longe, meio ofuscada”— depende do fim deste mundo e da criação de outro.

Nesse caso, talvez a literatura em sua dimensão especulativa, o trabalho intelectual negro e o “rico legado de vidas humanas obscurecidas por um passado de dissabores”, como diz Du Bois, possam ser cometas que nos permitam, enfim, enxergar o céu ao “proporcionar ao mundo novos pontos de vista e tornar preciosos para todos os corações humanos seus modos de amar, viver e fazer”.

AS ALMAS DO POVO NEGRO

  • Preço R$ 54,90 (296 págs.)
  • Autor W.E.B. Du Bois
  • Editora Veneta
  • Tradução Alexandre Boide
  • Ilustrações Luciano Feijão

O COMETA + O FIM DA SUPREMACIA BRANCA

  • Preço R$ 39,90 (88 págs.)
  • Autor W.E.B Du Bois e Saidiya Hartman
  • Editora Fósforo
  • Tradução André Capilé e Cecília Floresta
  • Lançamento Nesta quarta (16), às 19h, no canal da Blooks no YouTube. Participação de Cecilia Floresta, Tulio Custodio e Fernanda Silva e Sousa

Fernanda Silva e Sousa

Doutoranda em teoria literária e literatura comparada na USP

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