A matança de mulheres negras

Os matadores são conhecidos, maridos ou namorados, atuais ou antigos. Elas são mulheres comuns, morrem pelos vínculos de afeto e conjugalidade. Ser mulher é correr perigo em endereço conhecido — mais da metade das mulheres morreu em casa, diz o Mapa da Violência em 2015. Os números são assustadores e denunciam o patriarcado da sociedade brasileira: uma em cada três mulheres foi morta pelos vínculos de afeto e conjugalidade. Elas morrem pelas mãos de homens que as têm como propriedade, objeto de posse ou tortura. Mas é embrenhada à supremacia patriarcal que outra faceta perversa do poder de dominação se anuncia: as negras morrem mais que as brancas.

Por Debora Diniz, do Justificando 

No universo geral das mortes de mulheres, o Mapa da Violência mostrou correlação inversa: a matança de brancas foi quase 10% menor em uma década, enquanto a de negras cresceu 54%. É preciso repetir — ser mulher é vulnerabilizar – se ao patriarcado violento, mas a maior matança de mulheres negras denuncia a racialização da dominação patriarcal. Nem como liberdade ficcional vale a tese de que vivemos em uma democracia racial: ao contrário, o patriarcado racista é tão violento entre nós que se esconde em alegorias históricas da casa grande e da senzala, em que o sinhozinho buscaria nas escravas sedutoras o alento para a frigidez da esposa branca. Não somos cordiais no convívio racial, uma mentira que acalma a soberania dos valores brancos repletos de cinismo para esconder sua face violenta. As mentiras da cordialidade e da democracia dificultam a enunciação de teses importantes sobre o Brasil — uma delas é reconhecer que somos um país de patriarcado racista.

Para os que duvidam de minha tese vergonhosa sobre como vivemos, apresento outros dados. Em 2015, publicamos estudo sobre a matança violenta de mulheres na capital do país.[1] Acompanhamos todas as mulheres que chegaram cadáveres ao Instituto Médico Legal entre 2006 e 2011. Iniciamos a pesquisa com registros de laudos cadavéricos — ali conhecíamos um corpo morto, e poucas informações sobre a matança. Entre elas, a forma da violência, a cor do couro e escassas pistas sobre quem seria a vítima. Acompanhamos o trajeto do laudo para a investigação: da polícia para o processo judicial até alcançar a sentença. Os resultados são medonhos.

Uma mulher negra tem três vezes mais chances de morrer de feminicídio que uma mulher branca. Se a casa é perigosa para todas, para as mulheres negras na rua também se morre por feminicídio: o acanhamento da brutalidade parece desconhecer fronteiras entre espaços, sendo a espetacularização da violência um sinal da maior precariedade da vida dessas mulheres. Mas a soberania patriarcal sai dos homens matadores e alcança os homens que deveriam investigar crimes e nos proteger: a cifra oculta sobre a autoria da matança é seis vezes maior entre as negras que entre as brancas. O assassinato de mulheres negras, além de mais comum que o de mulheres brancas, é mais desimportante para o Estado – algumas se mantêm como o corpo morto registrado no laudo cadavérico, pois não há solução investigativa ou sentença judicial sobre a morte. O fracasso da investigação tem explicação na mesma tese que mata as mulheres: é o patriarcado racista que move os homens matadores e a ineficiência policial na investigação.

Debora Diniz é antropóloga, professora da Universidade de Brasília, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética e autora do livro “Cadeia: relatos sobre mulheres” (Civilização Brasileira). Este artigo é parte do falatório Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e conversas. Para saber mais sobre o tema deste artigo, siga https://www.facebook.com/AnisBioetica.

+ sobre o tema

Cenários e desafios para a garantia da agenda de gênero na educação

O atual cenário educacional brasileiro está marcado pelo aprofundamento...

Educação feminina ajuda a evitar casamentos na infância, afirma UNESCO

Educação feminina De acordo com estimativas do “Relatório de Monitoramento Global Educação...

Professor de informática acusado de abusar sexualmente de alunos é preso em SP

Denúncia foi feita por vítima que sofreu abusos por...

Em novo álbum, Beyoncé desperta para questão racial

Lemonade, sexto álbum de estúdio da cantora, se afirma...

para lembrar

Feminismo não é o contrário do machismo por Mario Sergio Cortella

Mario Sergio Cortella, um dos intelectuais mais respeitados do...

Beyoncé é objeto de estudo de nova matéria de universidade americana

Faculdade em Illinois dará o curso "Perspectívas Críticas Sobre...

Álcool move violência doméstica

Novo estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),...

‘Caráter não se mede por sexualidade’, diz transexual Silvânia Santos conselheira tutelar

Silvânia Santos foi eleita pela população para ocupar o...
spot_imgspot_img

Universidade é condenada por não alterar nome de aluna trans

A utilização do nome antigo de uma mulher trans fere diretamente seus direitos de personalidade, já que nega a maneira como ela se identifica,...

O vídeo premiado na Mostra Audiovisual Entre(vivências) Negras, que conta a história da sambista Vó Maria, é destaque do mês no Museu da Pessoa

Vó Maria, cantora e compositora, conta em vídeo um pouco sobre o início de sua vida no samba, onde foi muito feliz. A Mostra conta...

Nath Finanças entra para lista dos 100 afrodescendentes mais influentes do mundo

A empresária e influencer Nathalia Rodrigues de Oliveira, a Nath Finanças, foi eleita uma das 100 pessoas afrodescendentes mais influentes do mundo pela organização...
-+=