Culpas ultrassecretas

O livro Lugar Nenhuma de Lucas Figueiredo relata o (pouco) que foi feito pelos governos democráticos pós-ditadura para evitar que as Forças Armadas escondam os documentos que revelam seus crimes

Por Fernanda Pompeu Do Fernanda Pompeu

Neste 2016 comemora-se trinta e um anos da volta da democracia ao Brasil. Mas a história de mais de duas décadas de ditadura, iniciada com o golpe de 1964, ainda não foi completamente passada a limpo. Isto é verdade, particularmente, com os chamados documentos secretos da repressão.

De todos os atores, as Forças Armadas – Exército, Marinha e Aeronáutica – são as que seguem firmes no pacto do silêncio. Insistem no teatro do ninguém sabe, ninguém viu. Essa fuga de responsabilidades fere a memória histórica recente do País. Porém não só.

O ocultamento de provas que registram investidas contra adversários do regime militar condena familiares das vítimas a continuado e insolúvel sofrimento. Impedir que circunstâncias de mortes sejam aclaradas e corpos sejam localizados são crime contra a humanidade.

Lugar nenhum – Militares e civis na ocultação dos documentos da ditadura, do jornalista Lucas Figueiredo, narra a trama da ocultação de provas em quatro atos: preservar, esconder, mentir, calar-se. Bem escrito, ele pega a mão do leitor e o conduz com segurança pelos escaninhos da memória furtada.

O livro começa detalhando o esforço exemplar do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) para catalogar e preservar os documentos da repressão. Detalha a metodologia de arquivamento, o investimento no pessoal, a passagem meticulosa do suporte papel para o microfilme. Dinheiro e energia foram gastos com o objetivo de deixar “para o futuro” fatos e atos da guerra travada contra a ameaça de “comunização” do Brasil. Ao lado do Cenimar, também fechavam fileiras o Centro de Informações do Exército (Cie) e o Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa).

Os três centros trabalhavam em parceria com o Serviço Nacional de Informações (SNI), criado logo após o golpe pelo general Golbery do Couto e Silva. Ao contrário dos Centros militares, o SNI não sequestrava, prendia, torturava, matava. Ao menos não diretamente. Algo fica cristalino no livro de Figueiredo: a ditadura criou uma expertise de informações nunca vista entre brasileiros.

Ela compreendeu que cada militante, sob tortura, poderia ser fonte de informação para outras prisões e para o desmantelamento das organizações armadas e desarmadas. O mapeamento de nomes, funções, agentes infiltrados, redes foi o pulo do gato dos agentes públicos envolvidos na repressão. Daí, a importância inequívoca de registar, catalogar e guardar.

Mas vida que corre, chegaram os tempos da chamada abertura política com o general presidente Ernesto Geisel (1974-1979). A linha-dura das Forças Armadas não gostou. Para esses militares, o perigo vermelho seguia em amarelo piscante. Com a presidência do último ditador, general João Baptista Figueiredo (1975-1985), os centros de informação temeram que os arquivos secretos caíssem em mãos erradas, pois a ditadura estava com os dias contados.

Veio o medo que os arquivos viessem a público revelando nomes, patentes, operações do lado da repressão. Bem como, informações sobre sequestros, torturas, mortes, chacinas e desaparecimentos. Leia-se, comprovações de que as Forças Armadas, apoiadas pelos poderes civis, haviam perpetrado graves atentados aos direitos humanos.

Para os militares da linha dura era a hora de descer o pano e esconder o palco da repressão. Ocultar diretores, protagonistas, staff que participaram das cenas sanguinolentas. Assim fizeram. José Sarney, o primeiro presidente civil (vice de Tancredo Neves, morto antes da posse), concordou que os crimes da ditadura, comprovados nos arquivos secretos, deveriam seguir secretos e nas mãos dos militares. Com Fernando Collor de Mello, mandatário diretamente eleito, o SNI começou a ser desmontado.

Mas foi no governo do vice de Collor, Itamar Franco (1992-1994), que a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos obteve audiência com o ministro da Justiça, Maurício Corrêa. Os familiares pediam a confirmação oficial das mortes e a entrega dos restos mortais, ou ao menos sua localização. Corrêa então determinou que as Forças Armadas abrissem seus arquivos sigilosos.

Os cabeças das casernas responderam com um canhestro relatório, no qual as informações reproduziam fatos já noticiados pela imprensa. Não entregaram nenhum original de documento. Além do uso abusivo de evasivas: teria sido morto, noticiaram que desapareceu, não havendo dados que confirmem etc. Ou seja, prevaleceu o famoso nada consta. Nas palavras do autor de Lugar nenhum: Exército, Marinha e Aeronáutica já não mandavam. Mas também não obedeciam.

Numa articulação perfeita, os chefes das três forças tinham a justificativa na ponta da língua: os arquivos sigilosos foram destruídos em operações rotineiras de limpeza. Inclusive os registros referentes às investidas contra os guerrilheiros do Araguaia. Operação contraguerrilha que envolveu mais de 2 mil homens! Mas é difícil acreditar que o Exército jogaria relevante memorial tático no incinerador. Ademais da óbvia importância histórica.

Tanto Fernando Henrique Cardoso quanto Luiz Inácio Lula da Silva sentiram na pele o autoritarismo da ditadura. O primeiro foi afastado da docência na Universidade de São Paulo e partiu para o exílio. Já Lula amargou 1 mês e 1 dia de prisão em 1980, além de ter seus passos minuciosamente monitorados por agentes policiais. Mas os dois não peitaram a grande farsa das Forças Armadas no mantra da inexistência de arquivos da repressão. Os familiares das vítimas pressionavam, parte da sociedade cobrava, mas os arquivos não apareciam.

Até que em 2007 a farsa começou a ser desmontada, sem querer, pelos próprios militares. Naquele ano, escreve Figueiredo: Veio à tona – e na íntegra (919 páginas) – importante documento do serviço secreto do Exército, o Projeto Orvil, cuja origem se deu em 1985.

O Orvil (palavra “livro” ao contrário) foi concebido para contar a história da repressão do ponto de vista dos agentes de segurança. A ideia era mostrar que comunistas, subversivos, guerrilheiros urbanos e rurais nada tinham de santinhos. Na verdade era gente perigosa e avermelhada. Para defender teses de extrema direita, os autores recorreram a informações de arquivos secretos.

Ao ser questionado como tais informações estavam disponíveis, uma vez que eram baseadas em acervo supostamente destruído, o ex-ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves foi categórico: Os arquivos foram queimados coisa nenhuma! Mas seus pares seguiram calados a cada cobrança de que dessem satisfação pública e consistente quanto à localização da memória da repressão.

A esperança sorriu mais uma vez no primeiro de janeiro de 2011, quando Dilma Vana Rousseff subiu a rampa do Palácio do Planalto. Afinal, a primeira mulher eleita presidente da República havia sido duramente torturada e passara três anos na cadeia. Mas mesmo ela não desafiou o silêncio das Forças Armadas.

É fato que, em 2012, Dilma instalou a Comissão Nacional da Verdade (CNV), cuja tarefa erainvestigar as graves violações de direitos humanos praticadas por agentes do Estado. Para tanto era necessário acessar os arquivos secretos da repressão. Dessa vez, os comandantes das três forças responderam com rapidez: os arquivos tinham sido banal e rotineiramente destruídos.

Também é fato que a CNV teve conhecimento de vasto material, 2.775 microfilmes do acervo secreto do Cenimar, entregue por uma fonte anônima ao repórter Leonel Rocha. Nesse material havia nomes de militares, burocratas, altas autoridades e agentes da repressão. Constava também registros de operações.

Tal munição deu autoridade para a CNV cobrar dos militares a abertura completa dos arquivos secretos. A resposta veio invariável: os arquivos não existem, foram destruídos. E os termos de sua destruição com os nomes dos que tinham autorizado (procedimento obrigatório) também foram incinerados. Em palavras simples: o esclarecimento da verdade e culpas correspondentes permanecem no final da fila.

Lugar nenhum—Militares e civis na ocultação dos documentos da ditadura
Autor Lucas Figueiredo
Editora Companhia das Letras
Ano 2015
Páginas 237

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