O que o legado de Lima Barreto tem a nos dizer na semana em que Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente do Brasil pela terceira vez? Não estranhe, mas uma boa resposta para essa pergunta me parece que já foi sintetizada no continente africano, em 1967, por Eduardo Mondlane, líder da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique). Ela, aliás, tem sido bastante usada por aqui, sem que muita gente saiba da sua origem.
Ao falar dos desafios de construção da independência nacional contra o colonialismo português, o intelectual militante moçambicano assim se manifestou:
Não há antagonismo entre as realidades da existência de vários grupos étnicos e a Unidade Nacional. Nós lutamos juntos, e juntos reconstruímos e recriamos o nosso país, produzindo uma nova realidade – um Novo Moçambique, Unido e Livre. A luta continua!”
Por óbvio, Mondlane não estava nem mesmo pensando no caso brasileiro. Mas vamos admitir que a frase “A luta continua!” e todo o resto da citação servem de estímulo para reconhecermos o comportamento social que articula os embates de Lima Barreto pela construção de um governo “oriundo do povo” há mais de um século e o momento que vivemos hoje por aqui.
A luta tanto continua que, quando alcançamos o bicentenário da nossa independência, um dos principais desafios do governo do presidente Lula será fazer com que o povo brasileiro se encontre no que ele mesmo disse em seu discurso de vitória na noite do domingo (30): “Não existem dois Brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação”.
O Brasil que Lima Barreto sonhou desde criança seria assim, mas ainda não é.
Os sonhos de liberdade de Lima Barreto
Há cem anos, Afonso Henriques de Lima Barreto assumia a condição de um bem-lembrado, um bakulo. Como aprendi com Hilton Cobra – ator que tem revivido o escritor negro brasileiro no teatro em “Traga-me a cabeça de Lima Barreto” -, bakulo é uma palavra de origem bantu que significa ancestral. Mais especificamente, diz respeito àquelas pessoas que deixaram um legado capaz de fortalecer a comunidade.
O nascimento de Lima Barreto data de 13 de maio de 1881 e seu falecimento remete ao dia 1º de novembro de 1922. Foram, portanto, 41 anos de vida transcorridos basicamente na cidade do Rio de Janeiro, durante os quais se autorizou a falar de temas de alcance mundial em textos dos mais diversos. Fez-se um homem do seu tempo, com as dores e as delícias que isso carregava.
Sua primeira infância transcorreu nos momentos finais da escravidão no Brasil e ele se tornou adulto nos anos imediatos à abolição. E que não restem dúvidas: Lima Barreto não foi escravizado, nem seus pais. Seu pai, João Henriques de Lima Barreto, foi um homem negro nascido livre que atuou profissionalmente como tipógrafo e funcionário público. Sua mãe, também uma mulher negra nascida livre, se chamava Amália Augusta, foi uma professora de primeiras letras, falecida seis anos após o nascimento do filho.
Como ele próprio nos deixou saber por meio de uma crônica publicada na “Gazeta da Tarde” em 1911: “Eu tinha então sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não lhe imaginava o horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde já os escravos rareavam, faltava-me o conhecimento direto da vexatória instituição, para lhe sentir bem os aspectos hediondos”.
Mesmo assim, o fim da escravidão mobilizou Lima pessoalmente, assim como a muitos colegas que frequentavam o colégio na Rua do Resende: “A professora, dona Teresa Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente, a quem muito deve o meu espírito, creio que nos explicou a significação da coisa; mas com aquele feitio mental de criança, só uma coisa me ficou: livre! livre! / Julgava que podíamos fazer tudo o que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos propósitos da nossa fantasia”.
Por que importa confrontar passados presentes?
Infelizmente, o Brasil com o qual Lima Barreto teve que lidar nos anos seguintes confrontou suas mais sinceras expectativas. No final dos anos 1890, por exemplo, ele chegou a ingressar na Escola Politécnica, mas não concluiu o curso de Engenharia, em decorrência do que a época se chamava de “preconceito de cor”. Em 2017, a instituição de ensino, hoje integrante da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), registrou publicamente um pedido de desculpas pelo racismo sofrido pelo jovem estudante que, em 1897, o fez abandonar o curso.
Nas duas décadas seguintes àquela experiência de fracasso escolar, mais outros tantos episódios semelhantes marcaram sua trajetória. No lugar do reconhecimento de seus talentos e virtudes, foram-lhe impostas acusações de ressentimento injustificado, fragilidade emocional, patologia social congênita e coisas do tipo. Tudo isso servindo para explicar por que a realização de seus sonhos seria um contrassenso e só. Afinal, “problema de raça” seria assunto do estrangeiro.
Em resposta, tais entraves à plena cidadania erguidos por força do racismo e outras discriminações contra pessoas como Lima Barreto lhe serviram de matéria para a construção de personagens imprescindíveis para que o país pudesse se ver numa medida correta, embora incômoda ontem e hoje. Isaias Caminha, Clara dos Anjos e o menino Zeca são alguns dos exemplos que nos permitem pensar o Brasil sem perder de vista o alcance das questões de raça, gênero, idade e classe.
Cidadão e escritor, Lima Barreto encarou ainda na Primeira República um imperativo negligenciado por muitos na atualidade: Tratar dos destinos do Brasil com seriedade passa necessariamente por garantir as possibilidades de vida digna para a população negra. Por não recuar em seu tempo, hoje ele se apresenta a nós como um bem-lembrado e nos obriga a fazer com que “Enfrentar sem tréguas o racismo, o preconceito e a discriminação, para que brancos, negros e indígenas tenham os mesmos direitos e oportunidades” seja uma marca do nosso tempo e não palavras ao vento numa celebração.
Na condição de sujeitos permanentes e com agendas próprias, indivíduos e coletividades negras não podem mais ser previstas em análises críticas apenas como corpos a colorir espaços políticos pensados como brancos. Ou seja, não se pode pensar a presença negra na história das lutas por democracia no Brasil tão somente como uma figurinha dourada, excepcional, num álbum organizado a partir dos critérios que serviram para pavimentar o protagonismo como expressão, por excelência, de sujeitos brancos.
Lima Barreto, presente! A luta continua!