Precisamos falar sobre como você silencia as mulheres ao seu redor

Quando começamos a falar de cultura do estupro, uma porta enorme se abre pra hábitos ligados à práticas de dominação de gênero. E é muito importante sairmos de uma fala de criminalização, prisão, morte, castração – uma fala de revolta, justa, mas restrita – pra olharmos pros nossos próprios hábitos, que revelam uma cultura inteira de opressão sistêmica.

Por Anna Haddad Do Comum

Os estupros notificados oficialmente são estimados em só 10% de todos os casos que realmente ocorreram (segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública). Mesmo assim, quase 50 mil estupros foram relatados em 2014. Mais de 70% deles são cometidos por pessoas conhecidas da vítima.

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Os dados trazem duas palavras-chave: culpabilização da mulher e silêncio.

E elas não são novas. Se olharmos com cuidado, essas duas palavras permeiam nossas ações e nosso entendimento do que é uma “mulher de respeito”.

E você se identifica com isso de alguma forma, tenho certeza. Quer ver só?

1. Mas precisava sair na rua com essa saia à noite?

Mas ela tem um filho e era usuária de drogas.

Essa frase infiltrou quase todos os artigos da grande mídia ao relatarem o estupro coletivo que aconteceu essa semana no Rio de Janeiro e chocou o mundo. E é um reflexo de uma cultura cruel, que culpa as mulheres por tudo. Assim como a frase da saia, aqui no título.

Culpamos as mulheres por tudo. Se ela teve um filho cedo, não se protegeu e é puta. Se abortou, não tem Jesus no coração e é puta. Se foi estuprada saindo da festa, estava bêbada e é puta. Se foi assediada voltando pra casa, estava de roupa colada e estava pedindo. É puta.

Vivemos uma cultura que culpa, controla e silencia as mulheres.

2. Mulher tem que ser elegante, educada, falar quando deve

Essa frase é bonita, mas é só um requinte de uma outra, mais verdadeira e escancarada: mulher tem que ocupar pouco espaço e ser silenciosa.

Pensando na função histórica da mulher no patriarcado – de suporte do homem, apoio, respaldo – mulher boa é, definitivamente, mulher que se resguarda, que fala pouco. Fomos, por muito tempo, negadas à dignidade da expressão legítima, autêntica e natural. É verdade que dependendo da época e da cultura, o silenciamento aparece com diferentes caras e justificativas. Proteção, necessidade de relegar a mulher ao âmbito privado, caracterizar o feminino como algo sagrado a ser preservado ou então nos deixar na posição de grandes conselheiras, ouvidas só em momentos importantes. Não importa. O que importa é que os espaços de fala públicos sempre foram masculinos. Enquanto nossos lugares de expressão eram os domésticos, em meio a outras mulheres. Fechadas e delimitadas a alguns assuntos.

Esse trecho épico de uma entrevista com o Edir Macedo e sua esposa mostra isso de forma bruta. A entrevista é conduzida pela sua própria filha e fala sobre os 41 anos de casamento do bispo. Após dominar a fala quase os 40 minutos do encontro, ele diz sobre sua mulher:

– Pai, diz uma coisa que você aprecia na mamãe. 

– Você sabe que o guerreiro está acostumado a matar, a lutar lá fora, mas quando ele chega em casa ele precisa de braços meigos, palavras doces, um afago, e a Ester é isso aí. E também, uma das virtudes da Ester que eu mais aprecio, que eu acho que as mulheres deveriam ter é, ela fala pouco.

3. Será que é verdade? Ela fala demais.

Nossa fala tem menos valor social.

Ela é sempre passível de ser trucada, tida como desnecessária, duvidosa, sem credibilidade. Não à toa os homens frequentemente interrompem e descreditam discursos femininos com termos ligados à ideia de emotividade exacerbada, como maluca, louca e exagerada (daí as expressões manterrupting e gaslighting). Um trecho do artigo Por que homens interrompem mulheres, do Daily Dot, fala sobre o assunto:

O fenômeno reflete a crença que mulheres valem menos, socialmente, que homens, e que as vozes deles são mais importantes. Essa ideia é reforçada pelas punições às mulheres que são assertivas em conversações como negociações, por exemplo. Quando elas brigam de volta, são inevitavelmente tachadas de “mandonas”, “chatas”, criando um ambiente hostil que normaliza a interrupção.

Isso acontece com toda a fala. Inclusive quando relatamos algo que aconteceu conosco. Um abuso de um tio pros nossos pais, um assédio de um ex-namorado pra um policial.

Se é assim no trabalho, no almoço de domingo com a família e no dia a dia com o parceiro, porque seria diferente com um estupro?

4. Calma, vou te explicar o que ela quis dizer

Explicar o que a amiga, a irmã, a mãe ou a colega de trabalho quis dizer entra no pacote (o termo mansplaining). É bem comum vermos falas masculinas de alguma forma esclarecendo ou corrigindo falas femininas anteriores. E é normal também darmos mais valor pro que sai da boca de uma mulher se um homem ratifica depois. Isso tem um nome: desvalor, descrédito. É forma de subjulgar uma mulher, como qualquer outra.

Termos que nos provar o tempo todo e lutar pela fala não é só sobre diálogo e abertura, é sobre dominação e política de gênero.

Precisamos ter consciência do desvalor social naturalizado da fala das mulheres. Depois, precisamos olhar pro que fazemos de fato pra mudar o cenário ao nosso redor.

Se não, as mulheres vão seguir se sentindo culpadas pelas agressões cometidas pelos homens, em silêncio. Mesmo sendo abusadas pelo próprio avô, forçadas a transar anos e anos com o próprio marido ou dizendo não pra aquele paquera na festa da faculdade.

Estamos focando nossos últimos conteúdos em cultura do estupro, desde o estupro coletivo da última segunda-feira, que aconteceu no Rio de Janeiro e chocou o Brasil. Seguimos falando sobre o assunto e abrindo as portas pra relatos de mulheres lá no fórum fechado pra assinantes. Se você se sentir chamada e quiser participar, saiba como aqui ou escreve pra gente no [email protected].

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