A Feminista Espantalho e a Propaganda Antifeminista na Cultura Pop

A feminista espantalho é uma criatura imaginária que incorpora todos os estereótipos negativos sobre o feminismo – e a cultura pop está cheia delas. 

Por Lara Vascouto Do Nó de oito

Na noite de 23 de junho de 1993, a norte-americana Lorena Bobbitt foi até a cozinha, pegou uma faca afiada, cortou fora o pênis de seu marido, John, enquanto ele dormia, e o atirou em um descampado. Percebendo, no entanto, a gravidade do que havia feito, ela ligou para o serviço de emergência logo em seguida, que acabou conseguindo encontrar o pênis de John e reconectá-lo após uma cirurgia de nove horas.

O julgamento de Lorena foi tumultuoso, mas no fim o júri a declarou inocente por insanidade temporária quando foi provado que o seu crime foi resultado de anos de violência física, sexual e psicológica nas mãos de John. O estupro sofrido na noite em que ela cortou o seu pênis não havia sido o primeiro, mas foi o que a levou ao limite.

Como seria de se esperar, o caso acendeu o debate sobre violência doméstica nos EUA e vários grupos feministas se manifestaram, tomando o cuidado de não endossar a violência do ato de Lorena. Mesmo assim, isso não impediu machistas e misóginos em todo o país de associar as demandas feministas à castração masculina. Em um artigo do Washington Post, o ator pornô William Margold chegou a dizer que inocentar Lorena era o mesmo que “dar o direito a feministas de vir e cortar os nossos pênis”.    

anigif_optimized-25898-1445903785-1Nossa, meu parabéns hein, que conclusão brilhante, campeão!

Como resposta a esse tipo de reação ao veredicto do julgamento de Lorena, a jornalista Ellen Goodman escreveu, em 1994, o artigo ‘Straw Feminist Declares Open Season on Men’, e nele cunhou o termo Straw Feminist – algo como Feminista Espantalho (por sua referência à falácia do espantalho, ou Straw Man argument). No artigo, Goodman escreveu:

“A feminista espantalho fez uma nova aparição. Ela está em todo lugar agora, pedaços de palha caindo pra fora de sua vestimenta militante. Ela é a estrela no resultado do julgamento que inocentou Lorena Bobbitt por insanidade temporária. (…)

Bem, eu achei que tinha me acostumado à feminista espantalho. Há vinte anos ela emergiu como Eva de uma costela extra, ou de um excesso de enchimento, do homem espantalho. (…). O homem espantalho também foi usado para assustar. Os argumentos atribuídos a ele não só eram fracos, como assustadores.

Então não fiquei surpresa quando a feminista espantalho foi vista queimando o seu sutiã – uma coisa perigosa para qualquer pessoa espantalho fazer – em um concurso Miss America. O fato de que nunca houve nenhum sutiã queimado era irrelevante. Feministas se tornaram queimadoras de sutiãs. E odiadoras de homens.

A feminista espantalho queria tirar todas as mulheres de seus lares felizes e colocá-las para trabalhar fora.

A feminista espantalho fazia aborto tão casualmente quanto tinha um dente extraído.

A feminista espantalho (…) era hostil para com a vida familiar e queria crianças arrebanhadas em creches do governo dia e noite. (…)

Essa criatura ajudava principalmente a descreditar as feministas reais, mas também era muito útil para assustar apoiadores. Sempre que uma mulher defendia seus direitos, ela podia ouvir a pergunta através de olhares desconfiados: “Você não é uma daquelas feministas, é?”

Tanto que muitas jovens mulheres começavam até os seus mais modestos argumentos com um olhar nervoso para essa figura de vodu, dizendo ‘Não sou feminista, mas…’.

O engraçado é que, ao longo dos anos, pouquíssimas pessoas investigaram o seu enchimento. Quais feministas, por exemplo, exaltam alegremente o aborto ‘sob demanda’? Nomes, por favor. Quantas feministas de fato esculhambam a importância da criação dos filhos? Números, por favor. A moça foi simplesmente aceita como verdadeira.”

Goodman cunhou o termo mas, como ela mesma aponta, a figura da feminista espantalho é antiga.Na verdade, ela foi conjurada das trevas de cérebros machistas e misóginos logo na primeira onda feminista – durante a luta das sufragistas pelo direito ao voto, no começo do século XX.

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E como qualquer pessoa que usa a internet sabe, é ainda amplamente usada hoje em dia.

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Em suma, a feminista espantalho é uma figura inventada que incorpora todos os estereótipos negativos de feministas. Como parte da propaganda antifeminista, ela funciona tanto no sentido de ridicularizar e descreditar o movimento, como de constranger as mulheres e impedi-las de se juntarem a ele.

Além da internet, a cultura pop é um dos lugares onde a feminista espantalho se faz mais presente. De fato, vasculhando a minha memória para identificar da onde veio a visão negativa que por muito tempo eu tive da palavra “feminista”, encontrei várias feministas espantalho do cinema e da televisão que marcaram a minha infância e adolescência. Dessa época, lembro principalmente de Marcy D’Arcy, do seriado Married with Children – uma feminista autodeclarada que incorporava todos os piores ideais e características da feminista espantalho: era uma mulher agressiva, exagerada e hipócrita, que acreditava na superioridade feminina e defendia a dominação dos homens pelas mulheres.

Seguindo uma linha parecida, mas bem mais leve, havia também Dana Foster, de Step by Step. Embora Dana fosse uma personagem querida (e muito mais bem construída e agradável do que Marcy), o seu feminismo também era desvirtuado e associado à frieza e amargura da personagem em relação a homens.

dana-and-marcy-600x422Marcy D’Arcy e Dana Foster

Além das feministas espantalho frias e duronas, prevaleceu ao longo do tempo também uma versão mais inofensiva dessa figura: a da mulher desconectada da realidade, que vê ofensa em tudo, protesta por besteiras, fala absurdos e se perde nos próprios argumentos. Britta Perry, da série Community, se encaixa bem nessa categoria, e até Phoebe, Monica e Rachel, de Friends, se tornam essa feminista espantalho no episódio em que elas se revoltam contra os homens depois de ler um livro bizarro sobre deusas que, entre outras coisas, diz que elas não podem deixar que os homens roubem o seu “vento”.

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Estou falando sobre você roubando o meu vento.

Além de se apossar de algumas personagens centrais de filmes e séries, a feminista espantalho faz também inúmeras pequenas aparições, principalmente em comédias. Basicamente, quando um roteirista quer tirar sarro de uma personagem secundária agressiva e grosseira, ele faz dela uma feminista. Um exemplo é a personagem Enid Wexlin, do filme Legalmente Loira, que quer lutar contra o patriarcado mudando a palavra “semestre” para “ovestre” porque decidiu que “semestre” tem origem na palavra “sêmen” . O interessante é que Elle Woods – a personagem principal do filme – é movida por ideais claramente feministas e desafia inúmeros estereótipos femininos que vemos no cinema – mas ela nunca poderia se identificar abertamente como feminista, né, porque“feministas são todas feias, amargas e mal-comidas!”.

Que fique claro que feministas da vida real têm todo o direito de ser tão frias, duronas e revoltadasquanto quiserem – afinal, temos motivos de sobra pra isso. O problema é que, na cultura pop, características como essas (tão indesejadas em mulheres na sociedade machista) são incorporadas na figura da feminista espantalho para compor um quadro ridículo e absurdo, como motivo de piada. A consequência é que o feminismo da vida real fica sendo também entendido como ridículo e absurdo pelo público.

Além disso, quando as feministas espantalho não são usadas como a piada da vez na cultura pop,  elas são pintadas como vilãs, como aconteceu na terceira temporada de Veronica Mars. O interessante, de novo, é que mesmo em filmes e séries com personagens centrais bem alinhadas com o feminismo (como é o caso de Legalmente Loira e Veronica Mars), os roteiristas parecem sentir a necessidade de deixar claro que essas protagonistas incríveis não são feministas. E eles fazem isso de duas formas: 1) fazendo com que essa protagonista nunca se declare feminista; e 2) incluindo personagens que se declaram abertamente feministas, mas que na verdade são feministas espantalho.

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Jeito certo de defender equidade de gênero para Hollywood: você pode ser incrível, mas ouse pegar num cartaz de protesto ou falar abertamente sobre direitos das mulheres para ser logo transformada em uma “feminazi” agressiva e castradora.

Raros são os casos em que temos uma personagem que se identifica abertamente como feminista e não é encaixada à força no estereótipo da feminista espantalho. Kat, de 10 Coisas que Eu Odeio em Você, quase consegue esse feito, mas aí a gente lembra que o filme é uma adaptação de Megera Domada, e que, sim, claro que Kat é a megera e que, sim, claro que a megera moderna tinha que ser uma feminista. E embora ela não seja exatamente domada pelo Heath Ledger no final, ainda assim o filme consegue acabar com qualquer crítica social que Shakespeare talvez tenha querido transmitir com a peça original ao revelar que Kat é revoltada daquele jeito porque um cara foi escroto com ela.Porque, lol, feminista é tudo mal-comida, né!

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É, eu sei, é decepcionante, Kat.

Então é isso. Agora sabemos por que muitas de nós já relutavam em se identificar como feministas mesmo antes de caras aleatórios começarem a nos mandar memes de “feminazi” no Facebook. Duas palavras: propaganda antifeminista. Que o fato de algum dia já termos nos deixado calar ou influenciar por uma invenção perversa como a feminista espantalho nos sirva de lição e nos faça perceber como o machismo ainda é arraigado e sistêmico. E que não nos esqueçamos: o caminho ainda é longo.

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