Quem plantou, quem colheu, quem aguou? – O protagonismo feminino no meio rural

AVE MARIA DAS QUEBRADEIRAS

“Ave palmeira

Que sofre desgraça.

Malditos: derruba, 

Queima, devasta.

Bendito é teu fruto 

Que serve de alimento

E o leito da terra, 

Ainda dá sustento.

 

Santa mãe brasileira,

Mãe do leite verdadeiro.

Em sua hora derradeira,

Rogai por todas as quebradeiras. Amém”.

Essa é a oração oficial entre as quebradeiras de coco babaçu. E ela ecoa além dos muros dos espaços religiosos. Sob os fortes “tac, toc, tec”, som produzido pelo fruto sendo quebrado, o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, o MIQCB, aparece como forma de resistência das mulheres trabalhadoras, agroextrativistas e cidadãs, entre os estados do Maranhão, Pará, Piauí e Tocantins. São cerca de 400 mil mulheres organizadas no movimento, desde 1991, que seguem o ritmo intenso de “Quebramos, tiramos o azeite. Produz o sabão, o carvão. Da amêndoa tiramos o leite de coco…e colar, brincos, pulseiras”. A bandeira dessas mulheres? Livre acesso aos babaçuais, à terra, equidade de gênero, preservação das palmeiras e qualidade de vida da mulher no campo.

O meio rural muitas vezes reproduz a lógica da subordinação das mulheres ao trabalho doméstico, da invisibilidade ao protagonismo feminino, da ausência de autonomia acerca das atividades do campo e, por fim, da mulher fortemente associada à reprodução e ao cuidado. E é do eco das reivindicações das mulheres no ambiente urbano, que começam a surgir movimentos femininos no meio rural, no período posterior a ditadura militar. Movimentos de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTRs), mais tarde alterado para Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), o MIQCB e tantas mais organizações que vão representar indígenas, quilombolas, pescadoras, e extrativistas.

No entanto, como já é de se esperar desse Estado e dos grandes detentores de poder, que repreendem violentamente manifestações originárias de grupos marginalizados, o meio rural é marcado por constantes e sangrentos conflitos. Margarida Maria Alves, líder sindical – a primeira mulher a presidir um sindicato de trabalhadores rurais – e responsável pela luta dos trabalhadores na Paraíba, foi assassinada em 1983. Mesmo após várias ameaças, as palavras “Da luta não fujo. É melhor morrer na luta do que morrer de fome”, demonstravam seu grau de politização e força.

Foi em sua homenagem que a Marcha das Margaridas, ocorrida inicialmente no ano 2000, reuniu cerca de 20 mil trabalhadoras rurais, em Brasília. Desde então, a Marcha das Margaridas consolidou-se como movimento de luta e de recordação das reivindicações pelos direitos das trabalhadoras rurais, ocorrendo de quatro em quatro anos. Ao longo desses anos, as pautas foram se somando e adaptando. As primeiras levantavam a bandeira do combate à fome, à pobreza e à violência sexista. Depois, reivindicavam desde o reconhecimento de trabalhadoras rurais enquanto profissão, a reforma agrária, acesso a políticas de saúde, educação, crédito e assistência técnica, até segurança alimentar e nutricional. A Marcha das Margaridas reúne, atualmente, 100 mil mulheres.

Como aliados às reivindicações femininas no ambiente rural, a agroecologia e os circuitos curtos de comercialização inserem-se como importantes possibilidades de mudanças da estrutura excludente das mulheres no campo. A primeira delas trata-se de um olhar alternativo à produção agrícola, alicerçada em práticas sustentáveis, sem resíduos químicos ou contaminações, que atuem em favor da segurança alimentar e nutricional. A segunda abrange a valorização da comercialização de produtos que passam por um ou nenhum intermediário, ou seja, feiras, cestas de alimentos orgânicos, pequenos mercados. Essa configuração estreita os laços entre quem produz – e como produz – e quem consome, de forma que os saberes locais e suas protagonistas sejam visibilizadas. Com os circuitos curtos, abriram-se oportunidades de fortalecimento da autonomia da mulher, uma vez que tais oportunidades requerem maior participação nas decisões de comercialização e produção, com maior controle social e financeiro. Apesar disso, segundo dados do Censo Agropecuário do IBGE, mesmo com o aumento na participação das mulheres no campo – de 13% para 19% entre 2006 e 2017 –, 81% dos produtores rurais é representado pelo sexo masculino.

Como desfecho, cabe trazer a importância do termo multifuncionalidade. Como o próprio nome sugere, a ideia é que sejam atribuídas novas funções à agricultura, para além do “produzir alimentos e fibras”. Espera-se, portanto, que essa multifuncionalidade compreenda a relação entre a agricultura familiar e a manutenção da biodiversidade, dos recursos naturais e das paisagens rurais. Que o campo e agricultura possam ser entendidos como um espaço de reprodução socioeconômica das famílias, que permitam a segurança alimentar da sociedade e das próprias famílias rurais, e que seja também um espaço favorável para a manutenção da vida no campo. Cabe, então, pensarmos:

 Você que tem fome, quando consome, sabe que mulher que produz? Seu nome, sobrenome, pronome e oração?

Referências

Site: Repórter Brasil – Quebradeira de Cocos Babaçu; Por Xavier Bartaburu e colaboração de Ana Mendes e Carolina Motoki; 27 de janeiro de 2018.

Site: Comissão Pastoral da Terra (CPT) – Do coco babaçu à emancipação: o poder das quebradeiras do Maranhão; Cristiane Passos: Assessora de comunicação da CPT Nacional

CARRAZZA, Luis Roberto; SILVA, Mariane Lima da; ÁVILA, João Carlos Cruz. Manual Tecnológico de Aproveitamento Integral do Fruto do Babaçu. Brasília – DF. Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN). Brasil, 2012.


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