Duas décadas depois da Conferência de Durban, ainda temos desafio de resgatar direitos humanos

Precisamos respirar fundo e novamente lutar para proteger a nossa jovem democracia

Há 20 anos, 173 países, 4.000 organizações não governamentais e mais de 16 mil participantes se reuniram em Durban, África do Sul, para realizar a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, que ocorreu entre 31 de agosto e 8 de setembro de 2001.

O Brasil participou com a maior delegação do mundo, após intensas reuniões preparatórias dos movimentos sociais que ocorreram nas cinco regiões do país.

Dois temas foram fundamentais para o Brasil na conferência: a urgência da implementação de cotas e ações afirmativas para enfrentar a exclusão social da população negra e a necessidade de condenação do colonialismo e da escravidão geradores de desigualdades e sofrimentos na vida das populações negras e indígenas.

As organizações de mulheres negras, em particular Geledés (Instituto da Mulher Negra, Criola e Fala Preta), foram fundamentais para a participação brasileira qualificada na Conferência, bem como a AMNB (Articulação de Mulheres Negras Brasileiras).

Tive o privilégio de participar da Conferência pelo Ceert (Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades), que estava entre as organizadoras do processo. Era perturbador ver como a tensão crescia na relação com países europeus, quando se debatia o tema das reparações pela escravidão. Falar em indenizações e auxílio para os países com população em diáspora, que foram expropriadas na colonização, era procurar briga!

Enfim, aquele ano —2001— foi vibrante e proclamado o “Ano das Nações Unidas de Diálogo entre as Civilizações”. Só que não! Apesar de a Conferência ter enfatizado o direito de os povos indígenas administrarem suas terras e os recursos naturais nelas presentes, o que estamos observando são investidas gananciosas sobre as terras indígenas, bem como sobre os territórios quilombolas.

O documento oficial da Conferência, assinado pelo Brasil, tem força de lei no país. Dentre as definições, destaco o trecho em que insta as organizações governamentais e não governamentais, as instituições acadêmicas e o setor privado a coletar o dado cor/raça, analisar e publicar dados sobre a situação de grupos atingidos pela discriminação.

Só assim é possível diagnosticar as condições de vida da população negra e indígena na saúde, na educação, no trabalho, na moradia e na expectativa de vida e então desenvolver legislação e políticas para prevenir e combater o racismo. A Conferência contou com importantes lideranças internacionais, dentre elas Angela Davis e Winnie Mandela.

Sem dúvida, a alteração de dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases (LDB/1996), documento que organiza toda a educação básica brasileira, pela lei 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, foi impulsionada pela Conferência e é uma grande conquista para a educação brasileira.

Embora sua implementação seja considerada precária e inconclusa, ela permite que nossas crianças brancas, indígenas e negras conheçam mais o seu país.

A criação da Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), também ocorrida em 2003, abriu a possibilidade de exercitar o trabalho com relações raciais e de gênero, nas políticas públicas federais.

Nos anos seguintes, a implantação do programa Saúde da População Negra (2009), a definição por unanimidade de que ação afirmativa e cotas eram constitucionais (2012) e o estabelecimento de cotas no serviço público federal (2014) foram importantes avanços, ainda que com implementação tímida e cheia de interrupções. Mas se desdobraram em iniciativas nos estados e municípios brasileiros.

Em 2021, duas décadas depois, nos deparamos com o desafio de respirar fundo e novamente lutar para proteger a nossa jovem democracia e o Estado de Direito. Passos fundamentais para resgatar e fortalecer os direitos humanos, duramente atacados nos últimos cinco anos.

Tudo de novo? Sim! Mas o Brasil vale o desafio.

Leia Também:

Brasil e Durban – 20 anos depois – O Livro


Cida Bento

Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

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