Rede Globo: O racismo “Tá no Ar” ou “Quer açoitar quantos?”

“Interrompemos esse programa para apresentar um comercial do século XIX:

Extra, extra, atenção! Não compre escravo hoje!

É que amanhã é dia de mega promoção aqui nas “Escravas Bahia”.

Cabindas, Guinés, Angolas! O Feitor ficou maluco!

Quer açoitar quantos?

É isso mesmo! Compre dois escravos de engenho e leve uma ama de leite inteiramente grátis!

Venha conhecer novas filias: Pelourinho e Pedra do Sal!

Escravas Bahia: Servidão total pra você!”

Foto: Gabriel Brito/Correio da Cidadania

Por Douglas Belchior, do Negro Belchior 

Esse foi o roteiro interpretado por Marcius Melhem, em um quadro do programa “Tá no Ar”, que foi ao ar na última quinta-feira (12/02) pela Rede Globo, em que os atores “brincam com comerciais de TV”.

ASSISTA AQUI O REFERIDO EPISÓDIO

Já abordamos várias vezes neste Blog o debate sobre os limites do humor, aliás, assunto recorrente. Só para citar um dos casos, lembro o infeliz “Baú do Baú do Fantástico”, de novembro de 2013, quando Bruno Mazzeo dá vida a um repórter que faz a cobertura da abolição da escravidão no Brasil. Triste!

Preciso aqui repetir o “clichê” – verdadeiro à meu ver -, de que a rede globo de televisão é sim produtora de conteúdos ideologicamente comprometidos, sempre a serviço de determinados interesses políticos e econômicos e que sua arte, na maioria das vezes, tem sempre a intencionalidade de reforçar estigmas, estereótipos e valores, tudo isso com dois intuitos fundamentais: vender produtos de seus anunciantes e formar a opinião coletiva.

O Programa “Tá no Ar”, criação de Marcelo Adnet, Marcius Melhem e Maurício Farias e que conta com outros atores de peso como Danton Melo e Mauricio Rizzo, desde sua estréia em 2014, vem sendo comemorado pela crítica justamente pelo humor ácido e em grande parte, pela crítica à própria programação da rede globo e das tv’s tradicionais. Sei que muitos responderão è este texto com argumentos de defesa à liberdade de expressão, de crítica ao politicamente correto, de acusação ao “coitadismo negro” ou de erro na percepção, já que a intenção do programa teria sido exatamente o contrário: criticar e denunciar a forma como a TV expõe os negros. Um equívoco. E explico:

Empresto o pensamento da professora e ativista negra Adriana de Cássia, quando da polêmica sobre o conteúdo das charges do jornal francês Charlie Hebdo, que resultou no triste assassinato de diversos artistas, sem a intenção de comparações desproporcionais, mas pertinente:

“A ideia de raça que organiza o entendimento do que é o racismo se estabelece a partir de uma constante social, não biológica, que relaciona determinados traços fenotípicos a uma expectativa de desenvolvimento cognitivo e de comportamento social determinando, dessa maneira, tanto o lugar dos grupos sociais na estrutura quanto a expectativa que as pessoas tem em relação a esses grupos.”

Mesmo que a intenção dos humoristas do “Tá no Ar”  tenha sido criticar o racismo na televisão brasileira, há de se perguntar: “Os grupos que reivindicam direitos para a população negra fazem piada com a escravidão? O Movimento Negro faria? É possível também argumentar que o programa usa a estratégia da ironia para expressar uma idéia antirracista, entretanto, a imagem deveria falar por si mesma, não poderia dar margem para outros tipos de interpretações. Se, ao observar a imagem, é possível uma interpretação racista, a tarefa fora, neste aspecto, mal sucedida. Outra questão: Houve uma pesquisa dirigida à população negra para aferir como se sentem, tendo sua imagem e sua história satirizada em rede nacional? Eu, como descendente de pessoas escravizadas não me senti confortável com a piada. Tampouco achei graça em ouvir a “mega-promoção” em que a ama de leite sai de graça, depois da compra de dois escravos homens. Afinal, impossível não associar à minha mãe, irmã, filhas e à todas as mulheres negras brasileiras, principais vítimas da violência racista e machista em todos os níveis. Assim, a peça teatral da maneira como foi construída, reforça a lógica racista da representação.

E repito o que já escrevi aqui quando da análise do humorístico do Fantástico: Um regime de escravidão que durou 388 anos; Que custou o sequestro e o assassinato de aproximadamente 7 milhões de seres humanos africanos e outros tantos milhões de seus descendentes; e que fora amplamente denunciado como um dos maiores crimes de lesa-humanidade já vistos, deve ou pode ser motivo de piadas?

Quantas cenas de “humor inteligente” relacionado ao Holocausto; Ou às vítimas de Hiroshima e Nagasaki; Ou às vítimas do Word Trade Center ou – para ficar no Brasil – às vítimas do incêndio na Boate Kiss, assistiremos como fruto da boa intenção de roteiristas que não sabem do que falam ou do cinismo dos grandes meios de comunicação? Ah, mas homens e mulheres postos à venda e nos lembrando que sempre fomos – negros e negras – tratados como mercadoria, desumanizados e coisificados, em rede nacional e à mercê da gargalhada coletiva, isso pode! E com direito a status de humor crítico e inteligente.

Se é verdade que a crítica e a autocrítica são elementos da concepção de “Tá no Ar” e da iniciativa da emissora, eles falham no momento em que não rompem com a lógica de manipulação das representações e reforçam estereótipos raciais, colocando-se assim como um veículo de comunicação que, através de tal conteúdo, fortalecem e fomentam o racismo.

É preciso estar alerta. Fugir à regra da cognição racista é tarefa das mais difíceis. Se a missão é combater o racismo, não se pode utilizar da mesma lógica estrutural que organiza o pensamento racista. Portanto, nada de piadas sobre a escravidão, por favor!

 

 

 

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